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Blecaute.

Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai....

EncontrAR-TE.

É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe...

Pra bem longe do fim....

Ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma...

Espelhos

Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos...

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros...

8 de mai. de 2013

Temporada 2 - Parte 3 - Pulsão

Rústico, intenso, direto, livre e quase sensível. Trazia consigo um arsenal de vivências luminosas e sombrias que compunham um ar misterioso, desinteressado e egoísta. Sentia-se fora de contexto em diversos momentos, já em outros, totalmente inserido em um cenário seguro e familiar. A harmonia entre o que havia construído na profissão e em seu lar era apreciada e reconhecida como grandioso investimento pessoal e digno de preservação. Mas Tales precisava de muito mais do que isso. Manter-se conectado consigo mesmo em meio a tantas obrigações era um desafio desgastante.


Expandir era uma necessidade emocional constante. Viver os limites das sensações e dos sentimentos que se apresentavam diante de seus olhos e na superfície de sua pele era como o ar; vital. Seu corpo era pequeno demais e seus quase dois metros de altura não comportavam a grandiosidade de sua alma e dos seus anseios. Tentava enraizar, ser comum, mas sua natureza apresentava-se de forma impiedosa, transfigurando certezas sobre sua capacidade de cumprir de maneira padronizada aquilo que a normalidade ditava como regra de ouro.

As horas avançavam nos primeiros momentos da noite e enquanto a esposa colocava o caçula para dormir, Tales saiu para uma caminhada sob o luar. Alguns adolescentes riam e conversavam alto na calçada. Acendeu um cigarro e prosseguiu rua adentro. Quase podia sentir um estado de plenitude enquanto a noite o engolia e a brisa fresca lhe acariciava a fronte. Ávido por novas experiências e sensações, tentava contentar-se com a escassa comunhão com a natureza, retroalimentando, mesmo que superficialmente, o ânimo para prosseguir em sua jornada.

Mas a certeza de que o tempo em que aquela forma de driblar sua ânsia pela liberdade chegaria o angustiava, permitindo que a imagem de Miranda invadisse sua mente, tirando-o do marasmo, aquecendo a temperatura morna que tomara conta de seu organismo.  Encostou-se em uma árvore, olhou em volta, fechou os olhos e deu uma longa tragada. Podia perceber a pulsão correr dentro de si, inquietando-o. Pressão forte no peito, pernas travadas, olhar distante e a saliva a inundar a boca faziam com que Tales perdesse o foco, vagando para dentro e fora de si a deslizar em fantasias intensas com aquela que existia apenas para permitir-lhe extravasar, parcialmente, a energia que teimava em enlouquecê-lo.

Miranda era sua versão feminina, suavemente forte. Em poucos instantes ficava totalmente embriagado pelo odor imaginário, materializado em sua forma feminina. A imagem crescia dentro dele, fomentando sua natureza exploradora. Tales desejava desvendar os próprios sentidos ao encontrar-se com aquela mulher que o inspirava, aguçando seus instintos mais primitivos. Quando ela surgia, antagonicamente menina e mulher, o confundia, deixando-o perdido, infantilizado. Sua puerilidade maliciosa desestabilizava o controle que supunha ter sobre as próprias emoções. Não podia jogar com ela. Era muito perspicaz.

Levasse o tempo que fosse, por ego tomaria aquela mulher para si.  Sabia ser ela apenas mais uma de suas inúmeras conquistas efêmeras, descartável. Queria usá-la, fazer parte de sua vida, ideias, mas não desejava ser recíproco. Nada queria construir ao seu lado, apenas usufruir de sua energia. Saciado seu impulso e reabastecido muito mais do que em suas vivências sob o luar, regressaria para o seio de sua esposa até que nova inquietação se reiniciasse, forçando-o à caça de novas fontes de prazer.

Miranda sabia, sentia a energia de Tales e de uma certa forma apreciava, mas não tinha certeza sobre evitar deixar-se envolver  pelas necessidades dele. Sua autonomia afetiva lhe era cara demais para jogá-la ao vento a troco de nada. Infelizmente, isso não era consciente e Miranda ainda corria o risco de perder-se em suas lacunas emocionais.
Ana Virgínia de Almeida Queiroz


6 de mar. de 2013

Temporada 2 - Parte 2 - Arlequim

Sentia uma energia correr pela coluna vertebral, alcançando o topo de sua cabeça. Do lado de fora da loja, admirava a imagem do Arlequim que se posicionava sensual e descontraído a tocar sua flauta transversal. Desejava como criança aquela estatueta e seus olhos fumegavam. O coração, quase a lhe romper o peito, a remetia às lembranças das brincadeiras infantis na escola. Como era lindo o Arlequim! Enamorara-se por uma estátua!
E antes que sua racionalidade, de forma cruel e adulta se manifestasse, exigindo que ela abandonasse sua festa interior, remendava mais um retalho na colorida vestimenta da imagem folclórica que paulatinamente ia tomando vida. De olhos bem abertos, via-se de mãos dadas a ele, correndo pelas ladeiras de pé de moleque, pregando peças nas pessoas que caminhavam pela rua e gargalhando muito alto. As cenas projetadas em sua tela mental eram rápidas e possuíam musicalidade frenética. A eletricidade que inicialmente corria pelos centros de seu sistema nervoso era agora senhora de todo o seu belo e voluptuoso corpo.





Quase sete anos após a descoberta da traição de Fred, Miranda era agora uma mulher cheia de vida e cores. Tateava sobre desejos que dançavam em torno de sua vitalidade, mas a certeza de que queria vivenciá-la com todas as suas nuances lhe provocavam uma ânsia infindável em permanecer descobrindo o mundo e as pessoas. Vivia um dos melhores momentos de sua vida, que se diferenciava da plenitude da maternidade ou da segurança de seu romântico casamento. Só dependia dela a manutenção daquele estado febril e trepidante que a impulsionava à criação e à execução de projetos pessoais e profissionais.

Livre e suave,  ainda sentia muitas saudades do filho. De tempos em tempos encontrava dentro de si a escuridão que lentamente cicatrizava, abrindo espaço para a luminosidade da esperança. Queria reconstituir a vida em alicerces que desta vez não se demoliriam e que permaneceriam independentes do conviver com outras pessoas. Passageiras ou duradouras em sua existência, isso pouco importava, apenas se recusava a crer serem fundamentais para sua sobrevivência. Apreciava bastar-se.

Cuidava de seu corpo com paixão. Descobrira-se e apreciava estar em sua própria companhia. Intuía não encontrar alguém que lhe compreendesse  processo tão pleno; e justo por essa razão envolvia-se facilmente com os personagens de suas fantasias mais íntimas, que se projetavam em novas amizades angariadas  em suas vivências, sem apego. Permitia-se usufruir do melhor que tinham a lhe oferecer e, com a mesma facilidade com que autorizava entrarem em sua vida, os deixava partir, marcados por  afagos na alma.

E de amizades autorizou-se  vivenciar amores de forma intensa enquanto lhe duravam as chamas, de maneira branda quando se apagavam as luzes. Sentia as pessoas, seus dilemas e suas alegrias e as tomava para si como acolhia a si mesma. Seus inúmeros castelos de outrora, implodidos por forças alheias a sua vontade, eram hoje substituídos por uma única estrutura construída cuidadosamente, tendo a afetividade como base na elaboração de seu lar interno. Preocupara-se em fazer desse, acolhedor, de modo que pudesse regressar sempre que se sentisse dolorida em razão das quedas que certamente iria experimentar em suas inúmeras aventuras emocionais. Tinha plena consciência dos riscos, mas não deixaria passar um segundo qualquer que fosse da vida, que teimava em se apresentar sem trégua, sem pausa, como a força da água que rompe a represa.

Tornava-se assim, um mistério encantador, desejável. Muitos queriam decifrá-la. Transmitia força e suavidade tão naturalmente que, para pessoas comuns, isso era instigante e ao mesmo tempo ameaçador. Invejada e cobiçada, atraía para junto de si  pessoas afetivamente disfuncionais e era feliz desse jeito. Junto a elas permitia-se vivenciar seus mais secretos devaneios, chegando cada vez mais perto de sua parte mais obscura, proibida, reprimida e, paradoxalmente, colorida como a roupagem do Arlequim que se incorporava a ela, deixando para o passado qualquer identificação com donzelas ou Colombinas.
Miranda estava viva e ninguém podia duvidar da veracidade dessa afirmativa. Em retalhos de origens e colorações diferentes, saltitante e com a música a emanar pelos poros, tinha ela a força necessária para permanecer viva e prosseguir com seu intuito de desvendar os próprios mistérios. Totalmente voltada para si, ainda não era capaz de perceber que ali, bem próximo, alguém a esperava amorosamente...
Ana Virgínia Almeida Queiroz

17 de fev. de 2013

O ritual

Ainda sob estado de torpor, provocado por alguns minutos de sono reparador, sentia os olhos arderem, o corpo queimar no contato com colchão e a língua necessitar de algo que a fizesse aliviar a grossa camada nela projetada durante o repouso.

Espreguiçou-se, entrando em contato com as juntas que compunham seu trêmulo corpo, fazendo-a parar por alguns segundos, respirar profundamente e permitir que ele lhe tocasse a memória. Sentou-se na beirada da cama, apoiou o corpo nas mãos sobre o colchão e pousou os pés na fria cerâmica. Fazia calor, mas a brisa da janela lateral de seu dormitório lambia-lhe o dorso suado, da mesma forma que a estimulava a levantar.

Seguiu para a cozinha, estruturando mentalmente o ritual prazeroso de todo começo de tarde. Bebeu um copo de água fresca e em seguida, cuidadosamente, despejou a água na cafeteira, distribuindo o soluto em quantidade suficiente para produzir néctar relativamente forte, na parte superior.  Adoçou com carinho a xícara e aguardou como criança o momento em que o curioso fenômeno físico se processasse naquela caldeira. Viu o líquido de coloração escura escorrer pela minúscula fenda e feliz contemplou o sucesso da arte. Despejou o conteúdo em um recipiente transparente e seguiu com ele para seu quarto.

Já sentada na varanda, de frente para as árvores, ouvia os gritos das crianças brincando no pilotis enquanto segurava pires e xícara com a mesma suavidade com que dança uma bailarina. Contemplava a natureza que em sua beleza se apresentava em odor único – cafeinado. A fumaça aromatizada penetrava em suas narinas, sendo conduzida de forma harmônica por todo o seu organismo. Seus grandes olhos iam se fechando lentamente à medida que a xícara se aproximava de sua boca, na tentativa de sorver cada gota do café que a remetia à doce sensação de beijo invasor: lento, molhado, estonteante. E, enquanto absorvia algo das partículas possíveis do néctar, a língua também passeava pelos lábios na tentativa de capturar qualquer gota que ousasse se perder.

Sua garganta não se ressentia com a temperatura. Ao contrário, dividia o calor entre o trato digestivo e o ápice de sua fronte de forma a perceber, paulatinamente, a energia circulando em suas veias, fremitando em seu centro criativo, despertando para a ânsia de se fazer produtiva. Tudo assumia nova roupagem ao entrar em contato com aquilo que, ao se misturar com ela, compunha textos e arte dentro de si, gerando um doce estado de êxtase, alterando-lhe a consciência e permitindo que, sozinha, descobrisse a cada experiência como aquela, que se repetia diariamente, um pouco de si mesma e do que era possível realizar.

E milhares de conexões se faziam em minutos, durante aquele momento de profusão sensorial, sendo ela apta a captar, senão todas, grande parte das sensações que invadiam seu corpo. Era, sem dúvida, uma de suas paixões, vivenciada sempre da mesma forma, intensa como tudo o que se propunha fazer. Essa intensidade - que no sutil contraste entre o doce e o amargo, sacramentados em um mesmo recipiente - deixava rastros visíveis àqueles que dela comungavam sua sensibilidade, assim como os resíduos que sobravam no fundo da xícara, simbolizando o porvir.
 
 
Ana Virgínia Almeida Queiroz

4 de fev. de 2013

Temporada 2 - Parte 1 - Blecaute


Entrou em seu quarto, trancou a porta, fechou a janela. Dirigiu-se para o armário e desesperadamente procurou o pijama de flanela. Seu pequeno coração disparava a cada gaveta revolvida sem sucesso. Foi quando lembrou-se de sua mãe bronqueando por ela usar roupa tão pesada em clima de tanto calor.



Recordou o dia em que viu, pela primeira vez, uma pessoa morta em um caixão e desejou fervorosamente que seu dia chegasse. Suspirou profundamente, pegou alguns lençóis e cobertores... Esticou-os sobre a cama. Encontrou sob o travesseiro uma fina e curta camisola... sentiu um nó apertando-lhe a garganta. Parou alguns instantes, olhou em volta e catou alguns brinquedos barulhentos. Seu coração permanecia inquieto, seu raciocínio era rápido, seus lábios eram pressionados e mordidos enquanto executava suas ideias, numa tentativa de não deixar escapar nenhum detalhe que sua mente ia lhe enviando como solução para seus medos.




Distribuiu os brinquedos no chão ao redor da cama e enfiou as sobras dos lençóis e cobertores embaixo das laterais do colchão. Vestiu a roupa de dormir, destrancou a porta, apagou a luz e correu em disparada para a cama, entrando com dificuldade pela única abertura possível deixada nas roupas de cama cuidadosamente retesadas, à semelhança de finas, porém firmes, chapas de fórmica, simbolicamente esticadas para defesa de sua integridade.

Do seu leito ainda podia ouvir o barulho na casa e o som da televisão; porque estivesse muito cansada, adormeceu. Sua mente, não raro inquieta, impedia-lhe de aprofundar o sono. Quadros confusos e conflitantes iam se projetando em uma tela preta, deixando reminiscências no corpo físico a cada manhã. Seu adormecer era habitualmente interrompido pelo silêncio sepulcral da escura madrugada. Entorpecida pelo cansaço físico e mental, ainda lhe restava um quê de lucidez que lhe permitia perceber a movimentação angustiante no corredor que conduzia aos dormitórios. Passos transitavam vagarosamente em direção ao seu quarto.

E ali, deitada, conseguia ouvir a respiração de sua mãe que se deleitava em sono profundo. Apertou os olhinhos, cerrou a mandíbula, o coração acelerou, encolheu-se e uma lágrima desceu acidamente pelo canto do olho mais próximo ao travesseiro. Virou-se para o lado da cama que ficava voltado para a porta; certificou-se de que os brinquedos permaneciam ali; ajeitou os panos; frustrou-se ao fingir-se de morta, pois seu coração teimava em bater na garganta, lembrando-lhe sobre o fato de estar viva.

Uma sensação de solidão absoluta percorria-lhe os sentidos. Queria gritar, deixar então que o coração saltasse da boca e corresse em disparada pela rua em fuga. Mas tudo o que lhe restava era o encolhimento enquanto uma sombra humana crescia em sua porta e sua mãe dormia no quarto ao lado. Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai.

Ana Virgínia Almeida Queiroz - CRP: 01-7250


18 de jan. de 2013

EncontrAR-TE



É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe e, embora não as conseguisse traduzir, em um curto espaço de tempo suas percepções eram confirmadas com notícias de morte ou de pessoas precisando de ajuda. Seu dom, nada elaborado, a transtornava. Não tinha maturidade para lidar com isso. Para alguns, uma iluminada, para outros, uma desequilibrada. Era alvo fácil para manipulações energéticas e se desorganizava emocionalmente.

Precisava parar para sentir o que se passava lá dentro, mas o tumulto psíquico inviabilizava a tomada de consciência. Muitas vezes as sensações se assemelhavam a um choro contido no peito apertado, laçadas por um nó na garganta. A respiração tornava-se-lhe tênue, as forças iam lhe faltando e ao fechar os olhos, inúmeras imagens se descortinavam a mostrarem um quadro confuso e multicolorido.

Difícil e quase impossível era discriminar onde a imagem começava e, menos ainda, onde terminava. A única certeza que possuía era a de que sofreria noites insones, perderia o apetite e se desconcentraria facilmente em tudo, até que o ciclo terminasse para que um novo irrompesse.

Iniciava-se ali mais uma sequência de conexões intensas com vibrações diversas que, ao virem ao seu encontro, sugariam parte do seu manancial vital, misturando-se com seus impulsos mais profundos, menos acessíveis, impedindo, dessa forma, perceber o que era sentimento próprio do que era captado fora dela.

Sentia suas energias escaparem. Exaurida, não lhe sobrava muito mais do que o suficiente para sobreviver. Não compreendia, pois as sensações não comportavam a racionalização. Suas feições eram doces e suaves e seu gesticular sereno. Mas algo emanava odor subserviente. Aprendera muito cedo a desprender-se de suas próprias alegrias para sustentar emocionalmente pessoas a sua volta.

De forma ininterrupta, foi desconectando-se de si mesma. Seu andar era como um levitar e seu olhar atravessava o foco sem se fixar em nada. Perdera a própria noção corporal e vagava por horas em um mundo paralelo, no entanto sua percepção, alcançava a velocidade da luz. Era capaz de saber exatamente o que ocorreria minutos após a introdução da chave na fechadura, quando seu pai adentrava o lar ao final de cada dia.

A olho nu, era uma pessoa perfeitamente normal -  e o era de fato -, mas dotada de um potencial nada explorado. Um diamente bruto, alvo das paixões humanas, em especial da inveja. Não sabia como se proteger, como se defender da própria puerilidade. O poderoso manancial que poderia conduzí-la a uma vida bem sucedida escorria pelo ralo. Sua energia não era destinada ao desenvolvimento de um equilíbrio satisfatório para a vida adulta. Ao contrário, era disperdiçada na tentativa de obter amor e reconhecimento. Submetia-se a um jogo de lutas psíquicas, onde sempre dava mais do que recebia, aprisionando-se assim fora de si mesma. Não era capaz de se libertar totalmente, pois desconhecia a maior parte dos recursos emocionais que residiam internamente.

E ao invés de enlouquecer, perdendo a totalidade sã, fez da arte seu refúgio, seu alento, a tentativa de conexão com um mundo real, por mais paradoxal que isso pudesse parecer. Era sua âncora, o ligar-se ao cosmo divino, o extravazar do conteúdo reprezado em todos os seus sentidos. A salvação daquilo que poderia levá-la ao completo vácuo de sua essência, à possibilidade de reinventar-se e fingir-se de morta para garantir a sobrevivência, até que descobrisse conscientemente a ânsia de si, a paixão pela vida, a luta por existir e permanecer na serenidade das cores, das letras e das notas sonoras.






Ana Virgínia Almeida Queiroz
Psicóloga Clínica - CRP: 01-7250


24 de out. de 2012

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros... Nada a fazia sentir o próprio corpo, quiçá as emoções. Então, tropeçou em uma pedra no caminho para casa, caindo aos pés daquele que socialmente era marginalizado. Algo aconteceu ali. Algo que estava além de preceitos, “pré-conceitos”. Encontro de sombra e luz descortina um mundo de possibilidades, onde o mais importante seria perceber-se no outro e, simplesmente, permitir-se SER.

Aquelas saboneteiras nunca estiveram tão presentes em sua imagem refletida no espelho como nos últimos meses, tampouco aquela cintura. O olhar sugeria algo sedutor e sujo. Há algum tempo lutara, em vão, contra a podridão que se revelava no seu andar, gesticular, olhar e falar. Sucumbia a uma parte obscura de si mesma que em outros momentos a assustava, era agora um pedaço o qual jamais queria ver desprender-se de si ou retrair-se. Era ela quem estava ali, em carne, osso e alma. Olhos fundos, rosto encovado, como consequência de noites insones e da expectativa quanto à revivescência de momentos insadecidos ao lado daquele que veio tirar-lhe o sossego.

Uma sensação de poder tornara-a muito mais ousada na arte da maquiagem, testando aqui e ali novas cores e traços na tentativa de encontrar máscaras que pudessem melhor decifrar o inusitado e o antigo de sua própria essência. Poderia ficar horas enamorando-se a revolver lembranças das másculas mãos a percorrerem-lhe o corpo provocando a terrível sensação de um frio que transitava pela espinha e pelo estômago e lhe favorecia o ritual egocêntrico e emocionalmente mutilante. Respirava fundo, iludindo-se relativamente ao controle sobre as aparições dele.

E chegava assim com um jeito de menino, mil justificativas, toda vez que a deixava alguns dias sem notícias. Não sabia exatamente o que acontecia em tais momentos, mas aquele olhar, quase triste e com medo de perdê-la, a exemplo do que acontecera em relacionamentos por ele descritos como traumáticos, fazia com que todo seu tormento escoasse para dentro de si mesma, impingindo-lhe a impressão de engolir um remédio amargo e necessário à retenção da vida que julgava estar fora dela.

A raiva pelo abandono e pela descosideração ia se dissolvendo e logo ela estava incorporada em um papel maternal, que em poucos minutos era substituído pela lascívia. E não tinha forças para sair do jogo. A sedução era inquietante demais, regada a horas de prazer e de terror banhadas a uma ansiedade dilacerante. Viciara-se naquele processo e, eufórica, apreciava a descoberta do próprio corpo e da mente doentia que paulatinamente ia se encaixando no compasso leviano dele. Era a entrada para finalmente experienciar tudo de que havia sido privada em favor da sacralidade feminina.

Os pensamentos trabalhavam a todo instante a serviço da sexualidade manifesta em sua forma mais comum. Não percebia o potencial que rompia as barreiras de um processo educativo repressor de suas emoções mais genuínas e embolava-se nos desarranjos emocionais que emanavam dele, fazendo com que acreditasse ser ela a louca em constante devaneio em razão dos conflitos gerados entre sua intuição e os fatos. Assumia a culpa do desalinho que lentamente ia se apoderando da relação, baixando a cabeça para as agressões manifestas no desdém, na indiferença, nas sensações de possuir pouco ou nada de importância e de que iam se apossando do espaço antes preenchido por intensa sedução.

Desejava ardentemente o calor dos dias primeiros. As palavras bonitas que elevavam sua autoestima por intermédio da luxúria, fazendo-a se sentir única e especial. Inútil! Seus dias eram resumidos na busca incessante da certeza quanto ao seu valor, cuja única forma de ser ressaltado era por intermédio dos lábios dele. E não faria mais isso por ela, mas por outras que cruzavam seu caminho compulsivo, vaidoso e perverso. E diante do manancial de emoções confusas que dançavam dando voltas em sua sanidade, cabia a ela optar por três direções: a dor vitimada, a perversão despertada ou o transmutar do lado obscuro de sua alma à parte luminosa que vagarosamente surgia da escuridão daquela experiência.


Ana Virgínia Almeida Queiroz
Psicóloga - CRP: 7250-01

Suporte bibliográfico:
  • A parte obscura de nós mesmos - Uma história dos perversos - Elisabeth Roudinesco
  • Perversão - As engrenagens da violência sexual infantojuvenil - Cassandra Pereira França (org.)
  • Quem grita perde a razão - a educação começa em cada e a violência também - Luiza Ricotta
  • O conto foi também baseado na experiência de 33 mulheres que contribuiram com relatos sobre suas experiências com homens definidos como "cafajestes".





    A Rosa
    Chico Buarque 

    Arrasa o meu projeto de vida
     Querida, estrela do meu caminho
     Espinho cravado em minha garganta
     Garganta
     A santa às vezes troca meu nome
     E some

    E some nas altas da madrugada
     Coitada, trabalha de plantonista
     Artista, é doida pela Portela
     Ói ela
     Ói ela, vestida de verde e rosa

    A Rosa garante que é sempre minha
     Quietinha, saiu pra comprar cigarro
     Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
     Que sorte
     Que sorte, voltou toda sorridente

    Demente, inventa cada carícia
     Egípcia, me encontra e me vira a cara
     Odara, gravou meu nome na blusa
     Abusa, me acusa
     Revista os bolsos da calça

    A falsa limpou a minha carteira
     Maneira, pagou a nossa despesa
     Beleza, na hora do bom me deixa, se queixa
     A gueixa
     Que coisa mais amorosa
     A Rosa

    Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
     Bandida, cadê minha estrela guia
     Vadia, me esquece na noite escura
     Mas jura
     Me jura que um dia volta pra casa

    Arrasa o meu projeto de vida
     Querida, estrela do meu caminho
     Espinho cravado em minha garganta
     Garganta
     A santa às vezes me chama Alberto
     Alberto

    Decerto sonhou com alguma novela
     Penélope, espera por mim bordando
     Suando, ficou de cama com febre
     Que febre
     A lebre, como é que ela é tão fogosa
     A Rosa

    A Rosa jurou seu amor eterno
     Meu terno ficou na tinturaria
     Um dia me trouxe uma roupa justa
     Me gusta, me gusta
     Cismou de dançar um tango

    Meu rango sumiu lá da geladeira
     Caseira, seu molho é uma maravilha
     Que filha, visita a família em Sampa
     Às pampa, às pampa
     Voltou toda descascada

    A fada, acaba com a minha lira
     A gira, esgota a minha laringe
     Esfinge, devora a minha pessoa
     À toa, a boa
     Que coisa mais saborosa
     A Rosa

    Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
     Bandida, cadê minha estrela guia?
     Vadia, me esquece na noite escura
     Mas jura
     Me jura que um dia volta pra casa





    4 de set. de 2012

    Espelhos

    Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos. E diante do manancial de sentimentos renderam-se como mortais aos apelos do medo. Separaram-se pela aliança entre o amor e a morte e, mesmo deuses, arriscavam a trangressão da norma que os proibia de se tornarem humanos frágeis, rasos e vazios. Mas, definitivamente, não seria essa a escolha... Aquela mesma propulsão de emoções era um marco em suas vidas e seguiriam como divindades em busca de suas individuações, guardando em si o odor da vida que manifesta em poucas horas o que se poderia fruir por toda uma existência...


    Eram como faíscas os pontos luminosos que percebia saltarem dos olhos dele, remetendo-a às imagens de tormentos infantis representadas na visão perfeita daquilo que chamaríamos de inferno. Sentia a pele arrepiar, além de uma atração pela possibilidade de experimentar o mínimo de calor correr pelo seu corpo e dele esvair-se no flamejante olhar de que se fizera espelho.


    Vivia de forma lúcida cada escolha que aquele cenário lhe proporcionava, permitindo-se também entever e, por vezes, esquecer a razão. Sabia-se enlouquecendo, e desejava intensamente a loucura genuína de si mesma e não aquela projetada pelo outro. Havia aprendido a se amar suficientemente de forma a reconhecer o momento de parar.
    Ele também queria a pausa e não tinha coragem de dizê-la por ser ela frágil, ignorante, quase débil. Achava que seu jogo era imperceptível, quando na verdade era ela quem o deixava acreditar nisso. Sua conduta representava um meio de fomentar a vaidade dele e de proteger-se de sua ira. Ele a abandonava paulatinamente, deixando uma pseudo sensação de que era ela quem o fazia. Dessa forma, não lhe feria o orgulho e ainda restaria uma ínfima possibilidade de retê-la.

    Não havia sonhos, planos ou expectativas, apenas um amor que se confundia com as incertezas da ausência física e com a vontade que queimava o centro do corpo. Sensações que poderiam destruí-los, não fosse o grau de consciência a respeito dos sinais de pavor que ambos exalavam, acionando o alarme do outro. Foram se perdendo e se encontrando em outros mundos, contextualizando novas necessidades. Olhares nostálgicos pela exploração de possibilidades plenas, deixavam um “quê” de qualquer coisa inacabada quando já era tardio o momento para o resgate daquilo que vibrava em tempos idos.
    A única dor era a provocada pela dúvida quanto ao preparo para partir. Ações e reações motivadas por razões íntimas e desconhecidas traziam o infortúnio do não dito e sujeito a interpretações variantes. O risco de ser devorado apoderou-se da ânsia de se fazerem efetivamente felizes. A certeza de ser amado rompeu-se... deixando mais eloquente a sensação do ser usado e, ainda assim, se amavam. De uma forma única e talvez até eterna como uma doce lembrança dos dias que comungavam energeticamente da volúpia de se atracarem e tomarem para si o que julgavam ter sido furtado pelo outro. Eram como animais farejadores do cio, misturados e ao mesmo tempo individualizados. Como seria isso possível? Como alguém que jamais conheceu o inferno de si mesmo poderia compreender?

     Nem o desgoverno ilusoriamente mapeado de suas mentes seria capaz de entremostrar a resposta...


    Ana Virgínia Almeida Queiroz

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