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Blecaute.

Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai....

EncontrAR-TE.

É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe...

Pra bem longe do fim....

Ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma...

Espelhos

Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos...

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros...

24 de out. de 2012

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros... Nada a fazia sentir o próprio corpo, quiçá as emoções. Então, tropeçou em uma pedra no caminho para casa, caindo aos pés daquele que socialmente era marginalizado. Algo aconteceu ali. Algo que estava além de preceitos, “pré-conceitos”. Encontro de sombra e luz descortina um mundo de possibilidades, onde o mais importante seria perceber-se no outro e, simplesmente, permitir-se SER.

Aquelas saboneteiras nunca estiveram tão presentes em sua imagem refletida no espelho como nos últimos meses, tampouco aquela cintura. O olhar sugeria algo sedutor e sujo. Há algum tempo lutara, em vão, contra a podridão que se revelava no seu andar, gesticular, olhar e falar. Sucumbia a uma parte obscura de si mesma que em outros momentos a assustava, era agora um pedaço o qual jamais queria ver desprender-se de si ou retrair-se. Era ela quem estava ali, em carne, osso e alma. Olhos fundos, rosto encovado, como consequência de noites insones e da expectativa quanto à revivescência de momentos insadecidos ao lado daquele que veio tirar-lhe o sossego.

Uma sensação de poder tornara-a muito mais ousada na arte da maquiagem, testando aqui e ali novas cores e traços na tentativa de encontrar máscaras que pudessem melhor decifrar o inusitado e o antigo de sua própria essência. Poderia ficar horas enamorando-se a revolver lembranças das másculas mãos a percorrerem-lhe o corpo provocando a terrível sensação de um frio que transitava pela espinha e pelo estômago e lhe favorecia o ritual egocêntrico e emocionalmente mutilante. Respirava fundo, iludindo-se relativamente ao controle sobre as aparições dele.

E chegava assim com um jeito de menino, mil justificativas, toda vez que a deixava alguns dias sem notícias. Não sabia exatamente o que acontecia em tais momentos, mas aquele olhar, quase triste e com medo de perdê-la, a exemplo do que acontecera em relacionamentos por ele descritos como traumáticos, fazia com que todo seu tormento escoasse para dentro de si mesma, impingindo-lhe a impressão de engolir um remédio amargo e necessário à retenção da vida que julgava estar fora dela.

A raiva pelo abandono e pela descosideração ia se dissolvendo e logo ela estava incorporada em um papel maternal, que em poucos minutos era substituído pela lascívia. E não tinha forças para sair do jogo. A sedução era inquietante demais, regada a horas de prazer e de terror banhadas a uma ansiedade dilacerante. Viciara-se naquele processo e, eufórica, apreciava a descoberta do próprio corpo e da mente doentia que paulatinamente ia se encaixando no compasso leviano dele. Era a entrada para finalmente experienciar tudo de que havia sido privada em favor da sacralidade feminina.

Os pensamentos trabalhavam a todo instante a serviço da sexualidade manifesta em sua forma mais comum. Não percebia o potencial que rompia as barreiras de um processo educativo repressor de suas emoções mais genuínas e embolava-se nos desarranjos emocionais que emanavam dele, fazendo com que acreditasse ser ela a louca em constante devaneio em razão dos conflitos gerados entre sua intuição e os fatos. Assumia a culpa do desalinho que lentamente ia se apoderando da relação, baixando a cabeça para as agressões manifestas no desdém, na indiferença, nas sensações de possuir pouco ou nada de importância e de que iam se apossando do espaço antes preenchido por intensa sedução.

Desejava ardentemente o calor dos dias primeiros. As palavras bonitas que elevavam sua autoestima por intermédio da luxúria, fazendo-a se sentir única e especial. Inútil! Seus dias eram resumidos na busca incessante da certeza quanto ao seu valor, cuja única forma de ser ressaltado era por intermédio dos lábios dele. E não faria mais isso por ela, mas por outras que cruzavam seu caminho compulsivo, vaidoso e perverso. E diante do manancial de emoções confusas que dançavam dando voltas em sua sanidade, cabia a ela optar por três direções: a dor vitimada, a perversão despertada ou o transmutar do lado obscuro de sua alma à parte luminosa que vagarosamente surgia da escuridão daquela experiência.


Ana Virgínia Almeida Queiroz
Psicóloga - CRP: 7250-01

Suporte bibliográfico:
  • A parte obscura de nós mesmos - Uma história dos perversos - Elisabeth Roudinesco
  • Perversão - As engrenagens da violência sexual infantojuvenil - Cassandra Pereira França (org.)
  • Quem grita perde a razão - a educação começa em cada e a violência também - Luiza Ricotta
  • O conto foi também baseado na experiência de 33 mulheres que contribuiram com relatos sobre suas experiências com homens definidos como "cafajestes".





    A Rosa
    Chico Buarque 

    Arrasa o meu projeto de vida
     Querida, estrela do meu caminho
     Espinho cravado em minha garganta
     Garganta
     A santa às vezes troca meu nome
     E some

    E some nas altas da madrugada
     Coitada, trabalha de plantonista
     Artista, é doida pela Portela
     Ói ela
     Ói ela, vestida de verde e rosa

    A Rosa garante que é sempre minha
     Quietinha, saiu pra comprar cigarro
     Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
     Que sorte
     Que sorte, voltou toda sorridente

    Demente, inventa cada carícia
     Egípcia, me encontra e me vira a cara
     Odara, gravou meu nome na blusa
     Abusa, me acusa
     Revista os bolsos da calça

    A falsa limpou a minha carteira
     Maneira, pagou a nossa despesa
     Beleza, na hora do bom me deixa, se queixa
     A gueixa
     Que coisa mais amorosa
     A Rosa

    Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
     Bandida, cadê minha estrela guia
     Vadia, me esquece na noite escura
     Mas jura
     Me jura que um dia volta pra casa

    Arrasa o meu projeto de vida
     Querida, estrela do meu caminho
     Espinho cravado em minha garganta
     Garganta
     A santa às vezes me chama Alberto
     Alberto

    Decerto sonhou com alguma novela
     Penélope, espera por mim bordando
     Suando, ficou de cama com febre
     Que febre
     A lebre, como é que ela é tão fogosa
     A Rosa

    A Rosa jurou seu amor eterno
     Meu terno ficou na tinturaria
     Um dia me trouxe uma roupa justa
     Me gusta, me gusta
     Cismou de dançar um tango

    Meu rango sumiu lá da geladeira
     Caseira, seu molho é uma maravilha
     Que filha, visita a família em Sampa
     Às pampa, às pampa
     Voltou toda descascada

    A fada, acaba com a minha lira
     A gira, esgota a minha laringe
     Esfinge, devora a minha pessoa
     À toa, a boa
     Que coisa mais saborosa
     A Rosa

    Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
     Bandida, cadê minha estrela guia?
     Vadia, me esquece na noite escura
     Mas jura
     Me jura que um dia volta pra casa





    4 de set. de 2012

    Espelhos

    Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos. E diante do manancial de sentimentos renderam-se como mortais aos apelos do medo. Separaram-se pela aliança entre o amor e a morte e, mesmo deuses, arriscavam a trangressão da norma que os proibia de se tornarem humanos frágeis, rasos e vazios. Mas, definitivamente, não seria essa a escolha... Aquela mesma propulsão de emoções era um marco em suas vidas e seguiriam como divindades em busca de suas individuações, guardando em si o odor da vida que manifesta em poucas horas o que se poderia fruir por toda uma existência...


    Eram como faíscas os pontos luminosos que percebia saltarem dos olhos dele, remetendo-a às imagens de tormentos infantis representadas na visão perfeita daquilo que chamaríamos de inferno. Sentia a pele arrepiar, além de uma atração pela possibilidade de experimentar o mínimo de calor correr pelo seu corpo e dele esvair-se no flamejante olhar de que se fizera espelho.


    Vivia de forma lúcida cada escolha que aquele cenário lhe proporcionava, permitindo-se também entever e, por vezes, esquecer a razão. Sabia-se enlouquecendo, e desejava intensamente a loucura genuína de si mesma e não aquela projetada pelo outro. Havia aprendido a se amar suficientemente de forma a reconhecer o momento de parar.
    Ele também queria a pausa e não tinha coragem de dizê-la por ser ela frágil, ignorante, quase débil. Achava que seu jogo era imperceptível, quando na verdade era ela quem o deixava acreditar nisso. Sua conduta representava um meio de fomentar a vaidade dele e de proteger-se de sua ira. Ele a abandonava paulatinamente, deixando uma pseudo sensação de que era ela quem o fazia. Dessa forma, não lhe feria o orgulho e ainda restaria uma ínfima possibilidade de retê-la.

    Não havia sonhos, planos ou expectativas, apenas um amor que se confundia com as incertezas da ausência física e com a vontade que queimava o centro do corpo. Sensações que poderiam destruí-los, não fosse o grau de consciência a respeito dos sinais de pavor que ambos exalavam, acionando o alarme do outro. Foram se perdendo e se encontrando em outros mundos, contextualizando novas necessidades. Olhares nostálgicos pela exploração de possibilidades plenas, deixavam um “quê” de qualquer coisa inacabada quando já era tardio o momento para o resgate daquilo que vibrava em tempos idos.
    A única dor era a provocada pela dúvida quanto ao preparo para partir. Ações e reações motivadas por razões íntimas e desconhecidas traziam o infortúnio do não dito e sujeito a interpretações variantes. O risco de ser devorado apoderou-se da ânsia de se fazerem efetivamente felizes. A certeza de ser amado rompeu-se... deixando mais eloquente a sensação do ser usado e, ainda assim, se amavam. De uma forma única e talvez até eterna como uma doce lembrança dos dias que comungavam energeticamente da volúpia de se atracarem e tomarem para si o que julgavam ter sido furtado pelo outro. Eram como animais farejadores do cio, misturados e ao mesmo tempo individualizados. Como seria isso possível? Como alguém que jamais conheceu o inferno de si mesmo poderia compreender?

     Nem o desgoverno ilusoriamente mapeado de suas mentes seria capaz de entremostrar a resposta...


    Ana Virgínia Almeida Queiroz

    6 de jun. de 2012

    Parte final – Basta-te Miranda!

    Miranda, sentada à beira da cama, ouvia atônita a história confusa e estabanada de Fred. Sentia um alívio inexplicável, mas ao mesmo tempo forçava-se à dor da decepção provocada pela traição do marido. Tinha o direito de sentir-se magoada e afundar-se em novo processo depressivo, diferente do anterior em função apenas das motivações.


    Olhava para dentro de si buscando palavras que pudessem explicar para ela mesma e para o companheiro o que se passava naquele quarto, cenário de tantas vivências felizes e, ao mesmo tempo, a representação do vácuo que se estabelecera entre eles. Viveram juntos sob o mesmo teto, dividiram um leito por anos, e a sensação de que nada restara concretizava-se a cada vez que conseguia levantar o olhar e fitar o desespero de Fred.

    Via refletir nele toda a escuridão que se fizera seu próprio lar, durante a sua vida inteira, e sentia-se, pela primeira vez, feliz em saber-se normal, digna de liberdade. Por mais que ele merecesse sua gratidão e auxílio, não podia afundar-se em seu sofrimento. Era pesado demais e já não desejava a morte, como em outros tempos. Percebia, finalmente, que sua vida era um presente que apenas ela poderia ofertar a si mesma, e talvez não encontrasse outro momento. Fred deveria traçar sua própria história de dor e crescimento, assim como ela.

    Olhou o cônjuge com carinho, e uma faísca de pena, não mais que isso, se acendeu em seu peito. O caminho que agora ele percorria lhe era extremamente conhecido; cada pedra, árvore e buraco que compunham sua trajetória eram elementos que queria levar consigo onde estivesse. Eram seus e os valorizava como o ar que penetrava finalmente em seus pulmões.

    A tristeza de Fred a libertava! Finalmente ele se mostrava humano, vulnerável. Nunca, em toda sua história, fora apresentada àquele homem que estava ali, inibido, enrolado em seu corpo, ferido por ele próprio. Pensava no longo trabalho que uma nova companheira teria com ele e desejava sinceramente que obtivesse mais êxito que ela.

    Fred era desses homens difíceis de encontrar. Responsável, provedor, preocupado e muito, muito bonito. Teimara por anos na manutenção daquele casamento, mas agora já não fazia mais sentido. Tudo o que haviam construído juntos resumia-se em mais um castelo, que ela acreditara ser o último e definitivo. Não era! A vida não poderia findar-se entre paredes.

    O mundo descortinava-se iluminado diante de seus olhos. Não sabia ao certo por onde começar, mas daria o primeiro passo na bifurcação da estrada que desenhava a história de sua vida. Viveria intensamente suas escolhas, sem o peso medroso que lhe judiava a alma cada vez que se imaginava genuína. Queria viver para si e descobrir a grandiosidade do ser que habitava em seu corpo, livre, puro e sereno.

    Levantou-se, sorriu suave para o marido e dirigiu-se ao espelho. Era incrível como sempre estivera ali, mas não se via. Apaixonava-se, finalmente, por quem jamais a abandonaria.


    Ana Virgínia


    Para entender a parte final, leia os demais contos:




    30 de mai. de 2012

    Parte penúltima – A decisão pelo fim


    E ali, naquela festa, tudo voltava com tanta força que Théo era novamente tomado pelas sensações de sufocamento e opressão, iniciadas dias antes de sua viagem. Sentado no sofá, observava o quadro familiar que sempre lhe fora sofrido, patético e hostil. Pernas separadas, mãos sobre os joelhos, tronco ereto e pescoço travado, movimentava o olhar, desconfiado, tenso, defensivo. Estava pronto para esquivar-se definitivamente.

    Sua mãe, em postura real, vez ou outra lançava mão de sua acidez para ferir Elisa, e ele não entendia as razões pelas quais a irmã não reagia, não fugia, não gritava. O sentimento de impotência se agravava quando vislumbrava o futuro das sobrinhas, inseridas naquele contexto doentio e manipulado por Dona Cecília e Jairo, que se arrastaria por gerações.

    Não tinha forças para mudar a dinâmica, mas sobravam-lhe para excluir-se de ambiente tão repugnante. Será que tal afastamento dependia realmente de si? Dúvida que o perseguia, tomando-lhe as certezas sobre seu poder de decisão e independência. Não seria ele também uma peça no tabuleiro? Todos esses questionamentos o deixavam confuso e profundamente angustiado.

    Repudiava todas aquelas formas de “amor”, e entristecia-se quando lembrava de Miranda. Talvez com ela tenha vivido uma história verdadeira de afetos e afagos, de cumplicidade e respeito. Abandonara o melhor de si quando partiu e a deixara sozinha. Optara pela sobrevivência, que só seria possível longe da família. Não a levara consigo... por nada no mundo a submeteria às incertezas do caminho que resolvera tomar.

    Um dia difícil o aguardava tão logo o sol nascente tocasse a janela do quarto. Seu estômago revirava só de imaginar seu reencontro com ela. Estava com medo, trêmulo. Não sabia como se portar. Preferiu prender-se às imagens de um reencontro feliz a torturar-se com o vai e vem dos convidados de Elisa, que já havia se encolhido em algum lugar da casa.

    Jairo o olhava superior enquanto arquitetava com Pedro. As crianças brincavam inocentes. Ele, imóvel por fora e borbulhando por dentro. Dona Cecília soberba. Essa era a realidade visceral, concretizada em sua vida. Sentia náuseas!

    As folhas começavam a cobrir o chão, o calor insuportável destacava a plenitude do céu azulado de poucas, mas fofas nuvens. Cenário perfeito para as fantasias infantis, não fosse a hostilidade tempestuosa daquela capela.

    O ambiente fúnebre e as flores paradoxalmente entristecidas, a exalarem o odor da morte, açoitavam Théo em golpe definitivo, muito embora ele não percebesse o buraco que crescia no centro de seu peito. A saleta repleta de pessoas chorosas o perturbava, fazendo com que ele entrasse em contato com a própria dor, instalada desde seus primeiros anos de vida. Inconscientemente desejava ser aquele garoto no caixão, merecedor do consolo eterno e das lágrimas de Miranda.

    Só a morte poderia salvá-lo da vida de fugas pela qual optara...

    Degustara sua última refeição como quem apreciava uma dose de eficaz medicamento. O suco a escorrer pelas mãos amarelava o punho de delicada camisa branca e enchia-lhe os espaços entre as unhas. Lembrou-se da infância e uma fria lágrima rolou com dificuldade pelo rosto, misturando-se ao doce sabor do alimento. Olhar fixo frontal e lábios em movimentos repetitivos desejavam o alcance do centro daquele apetitoso, mas duro, momento de prazer.

    Imagens felizes junto ao pai e a Elisa povoavam-lhe a mente, rememorando as guerras com bolas feitas de barro e tantas outras brincadeiras inocentes, que o auxiliaram a manter-se vivo e homem até ali. Mas nada disso era suficiente a partir daquele momento. Cansado e triste, desejava, sem piedade, a paz; aquela que não conseguia imaginar viver ao lado dos parentes, por não saberem ou quererem libertar-se do processo parasitário familiar.

    Suspirou profundamente, olhou para o alto, apoiou-se na mesa e levantou. Lavou as mãos, seguiu estrada e nunca mais voltou, deixando para trás parte da angústia presente em cada olhar, sorriso, lágrima, abraço, e tudo o mais que a percepção é capaz de captar ao longo de uma existência.



    Ana Virgínia Almeida Queiroz



    Acompanhe os contos na sequência:

    17 de mai. de 2012

    Parte 10 - O encontro com a dor


    Guardava para si uma sensação que teimava em sufocá-lo cada vez que olhava para Miranda. Não se alimentava, pois uma pressão do trato digestivo travava o espaço compreendido entre a garganta e o estômago, provocando dor quando tentava comer.

    Sentia-se perdido e profundamente perturbado com os toques que anunciavam as mensagens e ligações no celular. A mulher virara um tormento, e as sensações de plenitude carnal perderam espaço para uma ansiedade descomunal. Não suportava o perfume, a risada, a voz ou qualquer outra coisa que a lembrasse. Sofria de um imenso asco, somado a um sentimento de culpa, por ter se misturado com aquela criatura.

    Alguns encontros, a saciação de sua necessidade em confirmar-se homem, e um profundo vazio. Lembrou-se do filho e chorou como no dia do sepultamento. Sobre a cama encolhia-se, agarrado ao travesseiro, vestindo em uma bermuda velha, desprotegido o peito. Da certeza sobre sua imponência e virilidade, sobrara um nada, um sopro rápido e seco afundado no velho colchão, recipiente dos mais devastadores sentimentos daquele arremedo de família.

    Miranda, que há muito vagava entorpecida pela casa, capacitava-se para ensaiar pequenas pausas ao pé da cama, na tentativa de entender o encolhimento de Fred e, paulatinamente, permitir que o instinto materno fosse tomando conta da imensa e profunda superfície possuída pelo luto de outrora.

    A cada tentativa de aproximação, mais Fred se escondia, forçando a companheira a criar estratégias de aproximação das bordas do imenso abismo que se abrira entre eles. O cônjuge irritava-se, implorando por momentos de paz e solidão, tentando promover o afastamento da esposa que, a qualquer tempo, poderia descobrir a escolha feita por ele para adiar o contato com a dor da perda filial.

    Miranda sentia o estômago revirar, e um pressentimento de que dias muito duros ainda estavam por vir lhe tiravam o sono. O sofrimento que a abatera por meses aquietara-se e nova nuvem escura se formava em seu semblante. Angustiava-se com a inexistência de pausa. Estava cansada, mas ainda tinha forças.


    Ana Virgínia Almeida Queiroz

    Acompanhe o conto na íntegra:

    7 de mai. de 2012

    Parte 9 - A teia

    Ele poderia, desesperadamente, realizar tudo o que lhe era mandado, mas nunca seria capaz de elaborar planos e promover sofrimentos com tanta perfeição. Sentia por Jairo um misto de admiração e inveja e, inúmeras vezes, o desejo de vê-lo morto não era suficiente para executá-lo. Ainda era cedo; precisava enfronhar-se nas teias mentais de seu guia e sacá-lo num golpe de mestre, fatal.




    Humilhado, nunca obtinha reconhecimento pelos seus feitos. Pedro era a sombra que punha em prática toda a maldade de seu mandante. Aliciavam mulheres, fraudavam notas fiscais, sonegavam impostos, tudo arquitetado sob o pálio da mesma precisão com a qual fora moldada a beleza de Jairo.

    Nada falharia se as etapas fossem minuciosamente observadas, pois era o pensante cuidadoso, perspicaz e invencível. Pedro rasgava-se por dentro, mas mantinha-se ali, vivendo de migalhas, trocos e expectativas. Projetava em Elisa todo o seu horror e, com ela, era capaz de ser o melhor vil, o pior marido, bastando Jairo aparecer e dar a impressão à irmã de que estava ali para protegê-la, jogando por terra todo o bem-estar do escravo. Apenas o preferido de Dona Cecília tinha o direito de massacrar a débil vítima, não admitindo que a incompetência de outro se sobrepusesse à sua força e ao seu preparo mentais.

    Elisa era um brinquedo nas mãos da mãe, do irmão e do marido. Jairo apreciava a fragilidade da irmã, e de tempos em tempos vinha sugar-lhe a vitalidade, a alegria. Seu cheiro pueril aguçava as mais tentadoras sensações, de tomá-la em seus braços e destruí-la em mil pedaços. No entanto, optara pela tortura por render-lhe prazer mais duradouro. Ela encaixava perfeitamente, reforçando o manancial de comportamentos desumanos do primogênito.

    Era como vampiro em busca de sangue. Seus joguetes lhe rendiam as energias dos gêmeos e deliciava-se como em um farto e rico banquete. Renovadas as forças, podia seguir em frente colecionando vítimas. Vivia em busca de satisfação, e Pedro poderia lhe favorecer isso por mais tempo sem ser descoberto.

    Sabia manipular as debilidades do cunhado, oferecendo pequenos flashes sobre sua importância. Pedro era tão perverso quanto Jairo, porém menos inteligente. Razão bastante para tanta inveja e vontade de liquidá-lo, mas faltava-lhe recurso, coragem. Franzino, feio e abobalhadamente cruel. O olhar raso e duro em perfeito equilíbrio com os finos lábios a sorrirem de canto. Era sua impulsividade seu maior entrave!


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Siga a sequência para compreender este conto:



    2 de mai. de 2012

    Parte 8 - Ruínas

    No parquinho, dezenas de crianças corriam agitadas a interagir, sorridentes, na disputa pelos brinquedos, no reconhecimento dos adultos por seus talentos e suas destrezas. Para ela, o que verdadeiramente importava era um canto na areia, um balde com um pouco de água e algumas folhas e flores. Esculpia cuidadosamente seu castelo, elaborado, a cada dia, ao sabor dos sentimentos que a impulsionavam de forma padronizada à repetição do ritual arquitetônico.

    Sentava-se de banda, o corpo apoiado na mão direita, enquanto a outra seguia, harmonicamente, o olhar, em busca de detalhes que compunham a perfeição da obra. Não ouvia nada. Dias iluminados, aquecidos em comunhão com a leveza das folhagens e dos dourados cabelos, que se punham a dançar motivados pela suave brisa.

     
    Ali, internamente, a solidão também se moldava, transformava, crescia em torres e pilotis, se manifestando delicadamente ao deslizar de cada punhado de areia através dos pequenos dedos. Um chamado e tudo ficaria para trás. Um breve adeus e a certeza de que, o que fora deixado jamais seria reencontrado, mas poderia ser reconstruído e novamente abandonado.

    Nada era para sempre. Nem os castelos, tampouco a presença de seu pai, que embora a tratasse como boneca não preenchia suas necessidades mais íntimas, se afastando de sua convivência ainda pequena. Miranda era a mais nova dos três filhos, e permaneceu no seio familiar presenciando as conquistas dos irmãos e o desbravar do mundo por eles. A cada despedida, novas estruturas se elevavam dentro dela e se refletiam no esmero de suas confecções, reeditadas em quase todas as relações.

    Ao casar-se experimentou, pela primeira vez, a sensação daquele que abandona. Perdeu-se entre as sensações de ambivalência e culpa, mas não podia voltar. Aquele castelo não fora construído por ela e ficaria para trás como tantos outros que se dissolveram ao sabor do vento ou de outras mãos. Sua vida se resumia a isso: construções e implosões que se repetiam, favorecendo uma constante e aparentemente indestrutível desconfiança sobre a natureza duradoura e verdadeira do amor.

    Movida pelas defesas que sustentavam sua base, convenceu-se de que um "não sei o quê" divino a punia, como um pai severo e educador inflexível. Queria entender o pecado que cometera e, como não obtinha respostas, sucumbia aos castigos. A morte do filho iniciara um novo olhar sobre esse insistente e egóico viver infantil. Precisava crescer, mas as prisões emocionais não colaboravam.

    A par da obviedade, começava a descortinar a possibilidade de mobilizar dentro de si energias antes desconhecidas, estranhas, e simultaneamente ameaçadoras e libertárias, capazes de promover a indispensável ruptura com aquela condição psíquica à qual se agrilhoara em seu templo interno abandonado, tantas vezes construído e demolido. Antes, porém, precisava vivenciar o luto que representava o saldar de todas as etapas anteriores de sua existência.


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Para entender a história, acompanhe a sequência dos contos:


    26 de abr. de 2012

    Parte 7 - Traição. A dor em fuga!

    Por meses o silêncio deslizou pelos cantos das paredes como poeira em dias de ventania e janelas abertas, rompido apenas pelas batidas do relógio na parede. Assim também o coração de Miranda, que vagava repetidas vezes pela casa deixando cada coisa em seu lugar. Dias infinitamente longos, suplantados pelo entorpecimento do sentimento de vazio refletido em seu olhar. Possuía a exata noção sobre a importância de reagir e a hora que não era chegada, necessitando vivenciar cada segundo do luto que a atravessou.

    O cenário angustiante, acrescido aos tormentos da culpa, também envolviam Fred, que, diferentemente da esposa, reagia cuidando de si. Empenhava-se na busca por um corpo perfeito, e no trabalho vivia sua melhor fase. Isolava-se em suas conquistas, afastando-se paulatinamente da companheira que, do seu ponto de vista, apreciava a dor, entregando-se ao escuro e abandono de si mesma. O corpo dela era inexpressivo, inodoro, opaco e antes que pudesse ser contaminado, agarrou-se à vaidade como recurso para a sobrevivência, seguindo em frente.

    Foi em meados de novembro daquele mesmo ano que ele reencontrou uma antiga conhecida. Nos tempos de faculdade um interesse de parte a parte os envolvia e, independente disso, a opção por permanecer em outra relação calou fundo. Reprimiu seus desejos sem pensar muito sobre isso, e sem imaginar que ali, naquele momento, ela estava mais viva dentro dele do que realmente gostaria. Alegres e descontraídos, como nos velhos tempos, atualizaram-se sobre suas vidas, passando um sobre o outro, olhares ternos e famintos.

    Falas quase sem pausa atropelavam-se na tentativa desesperada de absorverem-se, interrompidas apenas por sorrisos em harmonia com um leve baixar de cabeça e olhar suspenso. Mãos a ajeitarem os próprios cabelos também deslizavam pelo queixo ou pela borda do copo, pintando um quadro sutil e suavemente sedutor onde, a cada minuto, esqueciam-se do que haviam deixado fora dali.

    As pessoas em volta, a luminosidade e a música não interferiam naquela embriaguez egóica. O estômago vibrava, revirava, e a doce sensação de retomada da juventude (e tudo que ela representava) era prazeroso demais para se deixar escapar. Talvez fosse a única oportunidade que ambos teriam para se sentirem novamente visíveis para alguém. E se permitiram viver aquele instante, que favorecia a confirmação do valor que cada um necessitava acreditar possuir. 


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Para entender a história, acompanhe a sequência dos contos:






    10 de abr. de 2012

    Parte 6 - Um sociopata na família

    Um dia ensolarado e a certeza de vê-lo descer a rua com seu gingado compassado como na gafieira, evidenciando um ar despreocupado. Fios de cabelo negros caíam jogados sobre o rosto, cobrindo as vastas sobrancelhas. A fisionomia assemelhava-se a uma pintura, e o sorriso largo era o passaporte para tudo o que almejava. Ombros, braços e mãos grandiosos findavam qualquer sensação de fragilidade feminina. Fala bonita, gestos harmônicos, olhar amendoado e um cheiro masculino entorpecedor eram capazes de dominar o mundo.

    Era um conquistador, manipulador, afetuoso, irascível. Características que se manifestavam ao sabor de seus interesses e frustrações. Não possuía freios e perseguia obstinadamente seus objetivos. Inteligente, culto e sagaz, percebia o odor carente que exalava das mulheres e, de forma sutil, destilava toda sua sensualidade.

    Casadas ou solteiras, de nada importava. Era simplesmente um predador. Saboreava presa por presa, até se saciar. Tomava-as física, emocional e financeiramente. Conseguia proporcionar em suas vítimas sensações de prazer desconhecido e desbravar lugares inimagináveis em suas almas e corpos, enquanto elas desmanchavam-se em seus braços, desfazendo-se de suas defesas. Desprovidas de suas razões e viradas pelo avesso, se desprendiam de tudo o que tinham, sendo, em breve tempo, abandonadas ao próprio vazio.

    Jairo vivia dessas conquistas, matando, aqui e ali, a alegria e a saúde de outras pessoas. Tal conduta nunca o atormentara. Os outros representavam peças em um tabuleiro onde ele gostava de se refestelar. Arquitetava estratégias e gostava de perceber os resultados de suas manobras no emocional daqueles que se envolviam com ele. Para dona Cecília, o primogênito era indefeso e tivera menos sorte que os gêmeos. Divorciado e desempregado, tinha somente a ela. Colocava-se entre os irmãos e a mãe, divertindo-se com o fato. Em contrapartida, ninguém tinha seu apoio e quase todos cediam aos seus encantos. Menos Théo!

    A lucidez sobre sua impotência em lidar com Jairo o mantinha distante fisicamente, muito embora os apelos obscuros da dinâmica familiar fossem muito mais fortes do que sua vontade de nunca ter nascido naquele antro. Os investimentos afetivos destinados à mãe e à irmã, sempre desviados, e a certeza de estar cumprindo sua função de filho são fatos que nunca o tranquilizaram. Sentia-se oprimido, sufocado, injustiçado e abusado! Lutava bravamente contra as sensações que poderiam aniquilá-lo como homem, enquanto Elisa era uma marionete nas mãos do casal. Faziam joguetes, trocadilhos, e usavam de linguagem paradoxal que desde tenra idade a confundiam, tecendo uma mulher insegura sobre a própria imagem.


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Entenda a história acompanhando a sequência dos contos.





    2 de abr. de 2012

    Parte 5 - A festa de Elisa


    Seria aquele momento a comemoração de seu próprio aniversário se não fosse por um pequeno detalhe: a data! Trajava um belo vestido de tecido esvoaçante, estampas pastéis que permitiam um vislumbre sutil de suas delicadas curvas. Nos longos cachos, uma flor e um perfume suave escolhido cuidadosamente. Unhas feitas e um belo salto. Descia as escadas como rainha, causando perplexidade nos que estavam abaixo dela.

    Théo ajeitou-se no sofá para melhor perceber a irmã, mas foi Jairo quem tomou a iniciativa de ir ao encontro de Elisa e dar-lhe a mão para descer os últimos degraus. Pedro, no outro canto da sala, sorria irônico e Dona Cecília, a homenageada da noite, não esboçou nenhuma reação. As filhas transbordavam de alegria com a beleza imponente da mãe.

    Seu encanto vinha de dentro. A realização em ver toda a família reunida era indescritível. Aquele não era o momento para problemas. Com esmero, cuidou pessoalmente de cada detalhe da recepção familiar e ainda conseguiu se organizar para si mesma. Sua casa estava linda e também suas filhas. O cardápio perfeito abrangia o paladar de todos os presentes. Ela, como ninguém naquele recinto, gostava de receber as pessoas e sabia como fazê-lo bem.

    Lamentou momentaneamente a ausência do pai, e logo esqueceu. Seu irmão Théo estava lá e isso era o que verdadeiramente importava, era seu apoio e representava competência. Jairo era a beleza, a inteligência e a força física. Nutria pelos irmãos admiração, paixão, ciúme e sentia uma leve tendência à completude, não fossem as limitações na relação com ambos. Théo era muito fechado, não lhe dava espaço para falar de angústias ou alegrias, mas seu olhar abrandava sua alma sempre que estava por perto. Jairo, sedutor, lhe fazia sorrir sempre, encarava a vida com bom humor, mas algo acontecia que a deixava insegura nessa relação. Ela não atentava para esse fato de forma consciente, o que ocorria, de tempos em tempos, levando para longe seu irmão mais velho.

    Uma distância afetiva, por força da qual, de repente, ele se trancava e junto à mãe a fazia chorar. Nesses momentos sentia falta de Théo e de tudo o que poderia ter feito para, como ele, não precisar de ninguém, ser livre, elegante e importante. Só na imagem do gêmeo sentia força, nem o pai lhe trazia tal referência. Naquela noite, Jairo estava como ela apreciava: encantador! Tecia-lhe os melhores elogios, tratando-a como fidalga, mais galanteador como gostaria que fosse o seu próprio marido. Cercada por homens e invejada pela mulher que, apesar de todo o amor incondicional, sempre competiu com Elisa, assistiu o passar dos anos imersa em uma amálgama de sentimentos e incertezas sobre sua própria imagem e capacidade de ser amada.

    Só mesmo a proximidade de Théo motivava a fluidez feminina e também a competição com a própria genitora pelo amor de Jairo. Pedro era coadjuvante e sua função era alimentar a máscara de vítima para toda a família. Assim como a maioria das mulheres daquele sistema, se tornar mártir era uma honra, nem que para isso precisassem elas próprias destruírem umas as outras. Não tardou muito para que Elisa murchasse e seu brilho apagasse frente à acidez materna, o destino era a pia do banheiro e um espelho para limpar a maquiagem que se desfazia como a falsa e momentânea autoestima.


    Ana Virgínia Almeida Queiroz

    26 de mar. de 2012

    Parte 4 - Escolhas

    Já era quase noite quando Elisa o chamou. De imediato pensou em sua mãe e no que poderia lhe ter acontecido. A ligação era protocolar e estava a lembrá-lo sobre o aniversário da mãe, bem como o desejo de estarem juntos. Despediram-se e em seguida uma rápida notícia em forma de lembrança. Miranda tinha o filho internado e as chances de vida eram escassas. O que ele tinha a ver com isso? Não compreendia a razão pela qual a irmã fazia questão de lhe contar aquela bobagem. Passado tinha esse nome por razões lógicas.

    Tentou se concentrar no trabalho, mas já não conseguia. Seria fome? Talvez sono. Há semanas não dormia direito. A pressão profissional o tornava refém e seus dias e noites já não lhe pertenciam. Arrumou suas coisas e voltou para casa. Tudo estava em ordem, os livros, os CDs, as roupas. O ambiente indolor não lhe trazia nenhuma lembrança. Nada de significativamente valoroso estava registrado naquelas paredes. Tudo perfeito e novo como se há pouco tivesse começado.

    E por mais que tentasse, em seu cenário de perfeição, fugir às armadilhas, dentro de si um vendaval de emoções teimava em desorganizá-lo. Há anos mudou de cidade em busca de vida promissora. Era bem sucedido, capaz de proporcionar uma boa condição para a família, mas sentia-se exausto. As demandas eram infindáveis. Investia afetivamente em fundos falsos, mas continuava, pois algum prazer sentia em ver as pessoas iludidas quanto a ser ele um bom homem e dependentes dele. Era frio, não mau. Tinha pleno controle sobre as emoções, pois as considerava nocivas demais para aqueles que queriam progredir. Sentimento era coisa de gente fraca e, desde muito cedo, aprendeu a ser metodicamente racional.

    Estava inquieto. Algo o perturbava. Pensou no telefonema da irmã, lembrou da mãe a quem tanto amava e para quem faria qualquer coisa. Um nó na garganta tornou sua respiração mais curta, os dedos da mão direita batiam alternadamente sobre o braço da poltrona, enquanto a mão esquerda repousava sobre seu abdome, a perna esquerda não aquietava em um balançar de um lado a outro em movimento ora rápido, ora lento. Olhar fixo frontal, afrouxou a gravata, abriu os primeiros botões da camisa e veio uma lembrança: Miranda.

    A respiração pobre, interrompida por um longo e profundo suspiro, lhe fez fechar os olhos e um incômodo no meio do peito apontava como punhal invasor. O lar poderia ter outra configuração se estivesse com ela. Foram felizes, gostavam de rir, mas isso jamais o levaria ao alcance de seu objetivo. Aquele amor o fragilizava e ele não suportaria viver com o rótulo de filho fracassado. Lutou contra as emoções, rompeu consigo mesmo e batalhou obstinadamente por um lugar de prestígio na família e no mundo. Hoje, todos os seus dependiam dele. Depois da morte de seu pai, ele auxiliava nas despesas da mãe, da irmã e do irmão mais velho.  Dona Cecília, uma senhora muito frágil, de saúde debilitada, dispunha de todo o dinheiro da pensão para Jairo, o primogênito que ao se separar da esposa, voltou a viver com a mãe. Não tinha trabalho fixo, era um encostado e frequentemente se endividava.

    Elisa, casada, mãe de duas meninas, não trabalhava fora de casa. Mantinha um casamento de fachada e aos trancos e barrancos se dividia entre a própria família e os cuidados com a mãe, que residia a um quarteirão. Em algum momento de suas vidas, Théo e Elisa assumiram uma missão junto à família. Partilhavam das mesmas percepções acerca da mãe e do irmão, sentiam pena, raiva e culpa, mas principalmente a última renovava o equilíbrio familiar, favorecendo uma dinâmica onde, continuamente, os gêmeos abriam mão de suas vidas em troca de reconhecimento.

    Ele regressaria à cidade natal para o aniversário da mãe e de resto nada mais poderia prever além das chateações que vivenciaria em contato com o irmão. E Miranda? Deixou isso para depois...


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Este conto começa em:















    19 de mar. de 2012

    Parte 3 - Uma capela dentro de Miranda


    Não se olhava no espelho há algum tempo. Tinha medo de enfrentar a sombra que provavelmente estaria a saltar de seus olhos. Também não sentia fome, nem sede, nem sono. Apertava um terço fortemente entre as mãos enquanto o som sequenciado indicava os batimentos cardíacos. Todo o corpo estava travado na tentativa de manter o controle. O olhar intercalava ora o leito à sua frente ora a ansiedade que por vezes questionava sua fé.

    Os dias que antecederam a monstruosa dor foram marcantes. Havia uma intenção de que tudo fosse diferente, o amor mais presente, o diálogo incorporado. Aquelas mãos que se uniram para a súplica, outrora destilaram impaciência e medo, mas não podia pensar nisso naquele momento. Ser forte era tudo o que lhe restava e o nada para mudar o quadro, pois não dependia apenas dela. E se estivesse sendo castigada? Tudo seria em vão...

    Cada segundo ao lado daquela cama representou uma eternidade. Nenhum movimento, nenhum suspiro. Imóvel. Na mente as melhores e piores lembranças e as promessas do porvir. Uma culpa vulcânica crescia quanto mais tentava fugir dela. Talvez não tenha dado o melhor de si, o afago mais verdadeiro, o olhar mais terno. Teria seu amor se resumido aos cuidados diários e a sublimidade do afeto se perdido no cumprimento dos dias?

    Agora, ali, aquela capela era a própria sepultura. Vozes atravessavam seus sentidos e nada ficava retido. Queria encolher-se, enrolar-se, paralisar e permanecer imóvel até que o sofrimento acabasse. Nada mais ouvia senão o grito de desespero que a açoitava as entranhas. Nunca experimentara dor igual. Não existia nome para aquela perda. Vazio? Vácuo existencial? Muito mais que isso!

    O fechamento do leito definitivo representava a concretização da dor dentro de Miranda. Não tinha forças para gritar o desespero que se intensificava a cada giro dos parafusos. Correu e agarrou-se à rígida armadura que a separaria para todo o sempre de seu amado filho. Todos os seus projetos de acerto e sua esperança do melhor fazer foram brutalmente interrompidos. Ela fracassou e teria que amargar essa dura realidade até o fim de sua existência. Sentia-se dissolver como castelo de areia. Arruinada, fraca, morta-viva...

    Nada mais a ser feito. Acabou, tudo acabou... verdade que ecoava por dentro. Como poderia entrar naquela casa e não ouvir seus passos fortes correndo ao seu encontro, sorrindo, suado, contando histórias, seus feitos, mostrando desenhos, cantando, feliz?! Não teria entre as mãos os pezinhos, os cabelos, o corpinho. Não ouviria seus gritos, gargalhadas e choros. Não o repreenderia e seu cheiro se perderia com o desgaste de seus pertences. Como poderia viver sem tudo aquilo depois de já ter conhecido os efeitos?


    Estava em contato com uma profunda e velha sensação de abandono e repentinamente uma revolta obstruiu suas feições. A escuridão da alma já não podia ser contida e um urro rompeu o silêncio bloqueador da mais visceral lamentação. Odiou o terço, o pequeno altar, rasgava-se por dentro. Por que Deus não reconhecia sua existência? Sentia-se um peão no tabuleiro de xadrez, não queria mais jogar. A exaustão em perder impunha um limite às frustrações... só não decidira como seria o fim...


    Ana Virgínia Almeida Queiroz


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    11 de mar. de 2012

    Parte 2 - Mãe para quase todos

    Seus dias corriam contra o relógio e precisavam de mais horas. O corpo arqueava, a cabeça pendia para frente e levemente para a direita. Olhos ressecados, e boca cerrada, corpo em mecânico movimento, alma inerte para a vida. Cecília tinha que dar conta de fazer com que tudo acontecesse com perfeição. Só não percebia que essa cobrança a deixava isolada amorosamente, e as emoções mais conhecidas eram a irritação e a inveja.

    Não tinha tempo para fazer as unhas ou pintar os cabelos, e uma de suas maiores alegrias era ir às compras no supermercado. Inquietava-se com o valor dos produtos nas prateleiras e na forma como também eram organizados. Polemizava com o gerente. Perdera o senso ou talvez nunca o tivera. Possuía um ar de superioridade, embora sua aparência física se comparasse a de um cachorro de rua intimidado. Olhar duro, palavras mais ainda, davam-lhe a sensação de que estava sempre pronta para enfrentar o mundo. Matar ou morrer era o seu lema e era inconsciente.

    O mundo negara-lhe um espaço! Como queria ter nascido homem! Um prestígio peniano era tudo o que necessitava para ser aceita e valorizada. Não perderia tempo cozinhando ou trocando fraldas, nem precisaria estar inteira para servir o marido quando esse chegasse do trabalho cheirando a cigarro e feliz por se sentir produtivo, reconhecido. Estava enojada! Repudiava seu cheiro de macho, seus gestos, seu tom de voz. Nada que viesse dele lhe proporcionava prazer, só asco!

    As gestações lhe roubaram a vitalidade. Os seios secaram e a vagina também. Quase não se nutria, o pescoço encaixava nas “saboneteiras”, braços finos e veias à mostra nos pés e nas mãos. Suas vestimentas eram sempre pálidas tendendo para o cinza, sua bolsa sempre agarrada à frente, num balançar endurecido a caminho das obrigações. Tinha sonhos, e todos somados ao desafio de ser perfeita. Era a única razão para se manter em sobrevida.

    Seu primogênito era a única ponte para a cor, para a luz. Era lindo! Sentia-se orgulhosa ao lado de garoto tão imponente. Todos elogiavam sua beleza, seu comportamento, mas nada se falava sobre seu caráter. Antes que sua exposição pudesse se tornar um pouco mais eloquente ela o trazia para dentro de casa. Não tinha amiguinhos, não brincava na rua e entrou na escola aos seis anos de idade.

    Dos outros dois filhos não tinha muito o que falar, eram dispensáveis. Vieram porque assim Deus desejou, e não ela! Um casal de gêmeos para lhe tirar o sossego e atrapalhar o mais velho, mas os amava mesmo assim, cuidava, não deixava que nada faltasse. Eram bem alimentados, asseados e foram para a escola aos três anos, quando o mais velho também ingressou.

    Seus dias eram assim. Automáticos, controlados, perfeitos. Tudo estava a contento. Ninguém por nada podia lhe apontar, e ela apreciava a certeza de não sentir culpa. Mas, dentro de si, um bloco de mágoas e ressentimentos se sedimentou, e aos 39 anos era uma senhora, alegre ao ir ao supermercado, realizada no prestígio do filho. Esse que lhe proporcionaria os melhores sorrisos, que nunca a abandonaria. Como era parecido com ela aquele doce menino...

    Ana Virgínia Almeida Queiroz


    Este conto começa em:
    1. Pra bem longe do fim
    E continua com:



    Sobre a imagem do texto:

    "O Grito (no original Skrik) é uma pintura do norueguês Edvard Munch, datada de 1893. A obra representa uma figura andrógena num momento de profunda angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord (em Oslo) ao pôr-do-Sol. O Grito é considerado como uma das obras mais importantes do movimento expressionista e adquiriu um estatuto de ícone cultural, a par da Mona Lisa de Leonardo da Vinci". Leia mais em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Grito_(pintura)

    5 de mar. de 2012

    Parte 1 - Pra bem longe do fim...

    As folhas começavam a cobrir o chão, o calor insuportável destacava a plenitude do céu azulado de poucas, mas fofas, nuvens. Cenário perfeito para as fantasias infantis, não fosse a hostilidade tempestuosa daquela capela. 

    Sentada em uma cadeira, cotovelos apoiados nos joelhos, mãos cobrindo o rosto, cabelos desgrenhados e oleosos. Trajava uma calça que não combinava com a blusa e um chinelo. Nem de longe era aquela que Théo conhecera há pouco mais de vinte anos. Em volta dela as pessoas iam se agrupando desordenadamente na tentativa de consolar um mínimo possível. 

    A perda era irreparável e ele sabia disso; a luta fora inglória. De tempos em tempos ela retirava as mãos do rosto e ainda de olhos fechados fazia sinal de que estava ouvindo as pessoas. No canto da capela, ele alternava seu olhar em direção a ela e à caixa de madeira envernizada; o cheiro das flores o incomodavam.

    Das pessoas que ali estavam conhecia algumas, os pais e irmãos dela, o que não era suficiente para se sentir à vontade. Questionava-se então sobre a real finalidade de estar ali. Ao lado dela, o esposo pálido, olhos vermelhos de tanto chorar, tinha nas mãos um tremor incansável. Dela, o movimento repetitivo era o balançar do tronco revolvendo uma dor dilacerante.

    Deveria ele dar-lhe colo ou sentir-se culpado? Foram anos de paixão intensa, de promessas e planos. Acreditavam verdadeiramente naquilo que sentiam. Mesmo assim ele partiu, e seu castigo foi o de nunca mais conseguir sentir nada parecido por ninguém. Nunca parou de pensar nela; a cada minuto de saudade era capaz de sentir a seda de seus cabelos correndo entre seus dedos e a pele clara e rosada de sua face. O cheiro de lavanda eternizara-se em sua memória. As lembranças dela o auxiliavam na sobrevida afetiva, buscando aqui e ali, em outras mulheres, a mesma sensação de completude que naufragava a cada aventura. 

    Sentiu vontade de voltar inúmeras vezes, envolvia-se em outros projetos, enganando a si mesmo sobre sua importância, construída na falsa imagem de fortaleza e determinação. Agora estava ali, iludido de que aquele momento era oportuno para retomar as coisas de onde pararam. Talvez a dor a fizesse aceitá-lo de volta, ao menos como amigo, mas como seria isso possível se ela não enxergava ninguém à sua frente? 

    Impacientava-se quando, em lapsos de lucidez, percebia seu egoísmo... Deveria tentar falar com ela? E se ela não o aceitasse? E aceitando ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma. Encheria seu útero de vida e lhe devolveria o amor perdido. Lavaria seus cabelos, hidrataria sua pele, cobriria seu corpo com lençois de algodão. Seus olhos umedeceram e ela continuava alheia a sua presença. Recostou-se na parede, suas pernas enfraqueciam, suou frio, estava sendo tomado por aquele sentimento coletivo. O celular toca, era do escritório, saiu para atender, entrou no carro e partiu. 

    Quatro quarteirões adiante, parou em uma lanchonete. Sentou-se a observar as folhas cobrindo o chão, sob um céu azulado de poucas, mas fofas, nuvens. 

    - Que calor! 
    - Deseja pedir alguma coisa senhor? 
    - Uma manga... com casca por gentileza. 

    E nunca mais voltou.


    Ana Virgínia Almeida Queiroz

    O conto continua.
    2. Mãe para quase todos



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