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Blecaute.

Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai....

EncontrAR-TE.

É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe...

Pra bem longe do fim....

Ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma...

Espelhos

Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos...

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros...

26 de mar. de 2012

Parte 4 - Escolhas

Já era quase noite quando Elisa o chamou. De imediato pensou em sua mãe e no que poderia lhe ter acontecido. A ligação era protocolar e estava a lembrá-lo sobre o aniversário da mãe, bem como o desejo de estarem juntos. Despediram-se e em seguida uma rápida notícia em forma de lembrança. Miranda tinha o filho internado e as chances de vida eram escassas. O que ele tinha a ver com isso? Não compreendia a razão pela qual a irmã fazia questão de lhe contar aquela bobagem. Passado tinha esse nome por razões lógicas.

Tentou se concentrar no trabalho, mas já não conseguia. Seria fome? Talvez sono. Há semanas não dormia direito. A pressão profissional o tornava refém e seus dias e noites já não lhe pertenciam. Arrumou suas coisas e voltou para casa. Tudo estava em ordem, os livros, os CDs, as roupas. O ambiente indolor não lhe trazia nenhuma lembrança. Nada de significativamente valoroso estava registrado naquelas paredes. Tudo perfeito e novo como se há pouco tivesse começado.

E por mais que tentasse, em seu cenário de perfeição, fugir às armadilhas, dentro de si um vendaval de emoções teimava em desorganizá-lo. Há anos mudou de cidade em busca de vida promissora. Era bem sucedido, capaz de proporcionar uma boa condição para a família, mas sentia-se exausto. As demandas eram infindáveis. Investia afetivamente em fundos falsos, mas continuava, pois algum prazer sentia em ver as pessoas iludidas quanto a ser ele um bom homem e dependentes dele. Era frio, não mau. Tinha pleno controle sobre as emoções, pois as considerava nocivas demais para aqueles que queriam progredir. Sentimento era coisa de gente fraca e, desde muito cedo, aprendeu a ser metodicamente racional.

Estava inquieto. Algo o perturbava. Pensou no telefonema da irmã, lembrou da mãe a quem tanto amava e para quem faria qualquer coisa. Um nó na garganta tornou sua respiração mais curta, os dedos da mão direita batiam alternadamente sobre o braço da poltrona, enquanto a mão esquerda repousava sobre seu abdome, a perna esquerda não aquietava em um balançar de um lado a outro em movimento ora rápido, ora lento. Olhar fixo frontal, afrouxou a gravata, abriu os primeiros botões da camisa e veio uma lembrança: Miranda.

A respiração pobre, interrompida por um longo e profundo suspiro, lhe fez fechar os olhos e um incômodo no meio do peito apontava como punhal invasor. O lar poderia ter outra configuração se estivesse com ela. Foram felizes, gostavam de rir, mas isso jamais o levaria ao alcance de seu objetivo. Aquele amor o fragilizava e ele não suportaria viver com o rótulo de filho fracassado. Lutou contra as emoções, rompeu consigo mesmo e batalhou obstinadamente por um lugar de prestígio na família e no mundo. Hoje, todos os seus dependiam dele. Depois da morte de seu pai, ele auxiliava nas despesas da mãe, da irmã e do irmão mais velho.  Dona Cecília, uma senhora muito frágil, de saúde debilitada, dispunha de todo o dinheiro da pensão para Jairo, o primogênito que ao se separar da esposa, voltou a viver com a mãe. Não tinha trabalho fixo, era um encostado e frequentemente se endividava.

Elisa, casada, mãe de duas meninas, não trabalhava fora de casa. Mantinha um casamento de fachada e aos trancos e barrancos se dividia entre a própria família e os cuidados com a mãe, que residia a um quarteirão. Em algum momento de suas vidas, Théo e Elisa assumiram uma missão junto à família. Partilhavam das mesmas percepções acerca da mãe e do irmão, sentiam pena, raiva e culpa, mas principalmente a última renovava o equilíbrio familiar, favorecendo uma dinâmica onde, continuamente, os gêmeos abriam mão de suas vidas em troca de reconhecimento.

Ele regressaria à cidade natal para o aniversário da mãe e de resto nada mais poderia prever além das chateações que vivenciaria em contato com o irmão. E Miranda? Deixou isso para depois...


Ana Virgínia Almeida Queiroz


Este conto começa em:















19 de mar. de 2012

Parte 3 - Uma capela dentro de Miranda


Não se olhava no espelho há algum tempo. Tinha medo de enfrentar a sombra que provavelmente estaria a saltar de seus olhos. Também não sentia fome, nem sede, nem sono. Apertava um terço fortemente entre as mãos enquanto o som sequenciado indicava os batimentos cardíacos. Todo o corpo estava travado na tentativa de manter o controle. O olhar intercalava ora o leito à sua frente ora a ansiedade que por vezes questionava sua fé.

Os dias que antecederam a monstruosa dor foram marcantes. Havia uma intenção de que tudo fosse diferente, o amor mais presente, o diálogo incorporado. Aquelas mãos que se uniram para a súplica, outrora destilaram impaciência e medo, mas não podia pensar nisso naquele momento. Ser forte era tudo o que lhe restava e o nada para mudar o quadro, pois não dependia apenas dela. E se estivesse sendo castigada? Tudo seria em vão...

Cada segundo ao lado daquela cama representou uma eternidade. Nenhum movimento, nenhum suspiro. Imóvel. Na mente as melhores e piores lembranças e as promessas do porvir. Uma culpa vulcânica crescia quanto mais tentava fugir dela. Talvez não tenha dado o melhor de si, o afago mais verdadeiro, o olhar mais terno. Teria seu amor se resumido aos cuidados diários e a sublimidade do afeto se perdido no cumprimento dos dias?

Agora, ali, aquela capela era a própria sepultura. Vozes atravessavam seus sentidos e nada ficava retido. Queria encolher-se, enrolar-se, paralisar e permanecer imóvel até que o sofrimento acabasse. Nada mais ouvia senão o grito de desespero que a açoitava as entranhas. Nunca experimentara dor igual. Não existia nome para aquela perda. Vazio? Vácuo existencial? Muito mais que isso!

O fechamento do leito definitivo representava a concretização da dor dentro de Miranda. Não tinha forças para gritar o desespero que se intensificava a cada giro dos parafusos. Correu e agarrou-se à rígida armadura que a separaria para todo o sempre de seu amado filho. Todos os seus projetos de acerto e sua esperança do melhor fazer foram brutalmente interrompidos. Ela fracassou e teria que amargar essa dura realidade até o fim de sua existência. Sentia-se dissolver como castelo de areia. Arruinada, fraca, morta-viva...

Nada mais a ser feito. Acabou, tudo acabou... verdade que ecoava por dentro. Como poderia entrar naquela casa e não ouvir seus passos fortes correndo ao seu encontro, sorrindo, suado, contando histórias, seus feitos, mostrando desenhos, cantando, feliz?! Não teria entre as mãos os pezinhos, os cabelos, o corpinho. Não ouviria seus gritos, gargalhadas e choros. Não o repreenderia e seu cheiro se perderia com o desgaste de seus pertences. Como poderia viver sem tudo aquilo depois de já ter conhecido os efeitos?


Estava em contato com uma profunda e velha sensação de abandono e repentinamente uma revolta obstruiu suas feições. A escuridão da alma já não podia ser contida e um urro rompeu o silêncio bloqueador da mais visceral lamentação. Odiou o terço, o pequeno altar, rasgava-se por dentro. Por que Deus não reconhecia sua existência? Sentia-se um peão no tabuleiro de xadrez, não queria mais jogar. A exaustão em perder impunha um limite às frustrações... só não decidira como seria o fim...


Ana Virgínia Almeida Queiroz


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11 de mar. de 2012

Parte 2 - Mãe para quase todos

Seus dias corriam contra o relógio e precisavam de mais horas. O corpo arqueava, a cabeça pendia para frente e levemente para a direita. Olhos ressecados, e boca cerrada, corpo em mecânico movimento, alma inerte para a vida. Cecília tinha que dar conta de fazer com que tudo acontecesse com perfeição. Só não percebia que essa cobrança a deixava isolada amorosamente, e as emoções mais conhecidas eram a irritação e a inveja.

Não tinha tempo para fazer as unhas ou pintar os cabelos, e uma de suas maiores alegrias era ir às compras no supermercado. Inquietava-se com o valor dos produtos nas prateleiras e na forma como também eram organizados. Polemizava com o gerente. Perdera o senso ou talvez nunca o tivera. Possuía um ar de superioridade, embora sua aparência física se comparasse a de um cachorro de rua intimidado. Olhar duro, palavras mais ainda, davam-lhe a sensação de que estava sempre pronta para enfrentar o mundo. Matar ou morrer era o seu lema e era inconsciente.

O mundo negara-lhe um espaço! Como queria ter nascido homem! Um prestígio peniano era tudo o que necessitava para ser aceita e valorizada. Não perderia tempo cozinhando ou trocando fraldas, nem precisaria estar inteira para servir o marido quando esse chegasse do trabalho cheirando a cigarro e feliz por se sentir produtivo, reconhecido. Estava enojada! Repudiava seu cheiro de macho, seus gestos, seu tom de voz. Nada que viesse dele lhe proporcionava prazer, só asco!

As gestações lhe roubaram a vitalidade. Os seios secaram e a vagina também. Quase não se nutria, o pescoço encaixava nas “saboneteiras”, braços finos e veias à mostra nos pés e nas mãos. Suas vestimentas eram sempre pálidas tendendo para o cinza, sua bolsa sempre agarrada à frente, num balançar endurecido a caminho das obrigações. Tinha sonhos, e todos somados ao desafio de ser perfeita. Era a única razão para se manter em sobrevida.

Seu primogênito era a única ponte para a cor, para a luz. Era lindo! Sentia-se orgulhosa ao lado de garoto tão imponente. Todos elogiavam sua beleza, seu comportamento, mas nada se falava sobre seu caráter. Antes que sua exposição pudesse se tornar um pouco mais eloquente ela o trazia para dentro de casa. Não tinha amiguinhos, não brincava na rua e entrou na escola aos seis anos de idade.

Dos outros dois filhos não tinha muito o que falar, eram dispensáveis. Vieram porque assim Deus desejou, e não ela! Um casal de gêmeos para lhe tirar o sossego e atrapalhar o mais velho, mas os amava mesmo assim, cuidava, não deixava que nada faltasse. Eram bem alimentados, asseados e foram para a escola aos três anos, quando o mais velho também ingressou.

Seus dias eram assim. Automáticos, controlados, perfeitos. Tudo estava a contento. Ninguém por nada podia lhe apontar, e ela apreciava a certeza de não sentir culpa. Mas, dentro de si, um bloco de mágoas e ressentimentos se sedimentou, e aos 39 anos era uma senhora, alegre ao ir ao supermercado, realizada no prestígio do filho. Esse que lhe proporcionaria os melhores sorrisos, que nunca a abandonaria. Como era parecido com ela aquele doce menino...

Ana Virgínia Almeida Queiroz


Este conto começa em:
1. Pra bem longe do fim
E continua com:



Sobre a imagem do texto:

"O Grito (no original Skrik) é uma pintura do norueguês Edvard Munch, datada de 1893. A obra representa uma figura andrógena num momento de profunda angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord (em Oslo) ao pôr-do-Sol. O Grito é considerado como uma das obras mais importantes do movimento expressionista e adquiriu um estatuto de ícone cultural, a par da Mona Lisa de Leonardo da Vinci". Leia mais em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Grito_(pintura)

5 de mar. de 2012

Parte 1 - Pra bem longe do fim...

As folhas começavam a cobrir o chão, o calor insuportável destacava a plenitude do céu azulado de poucas, mas fofas, nuvens. Cenário perfeito para as fantasias infantis, não fosse a hostilidade tempestuosa daquela capela. 

Sentada em uma cadeira, cotovelos apoiados nos joelhos, mãos cobrindo o rosto, cabelos desgrenhados e oleosos. Trajava uma calça que não combinava com a blusa e um chinelo. Nem de longe era aquela que Théo conhecera há pouco mais de vinte anos. Em volta dela as pessoas iam se agrupando desordenadamente na tentativa de consolar um mínimo possível. 

A perda era irreparável e ele sabia disso; a luta fora inglória. De tempos em tempos ela retirava as mãos do rosto e ainda de olhos fechados fazia sinal de que estava ouvindo as pessoas. No canto da capela, ele alternava seu olhar em direção a ela e à caixa de madeira envernizada; o cheiro das flores o incomodavam.

Das pessoas que ali estavam conhecia algumas, os pais e irmãos dela, o que não era suficiente para se sentir à vontade. Questionava-se então sobre a real finalidade de estar ali. Ao lado dela, o esposo pálido, olhos vermelhos de tanto chorar, tinha nas mãos um tremor incansável. Dela, o movimento repetitivo era o balançar do tronco revolvendo uma dor dilacerante.

Deveria ele dar-lhe colo ou sentir-se culpado? Foram anos de paixão intensa, de promessas e planos. Acreditavam verdadeiramente naquilo que sentiam. Mesmo assim ele partiu, e seu castigo foi o de nunca mais conseguir sentir nada parecido por ninguém. Nunca parou de pensar nela; a cada minuto de saudade era capaz de sentir a seda de seus cabelos correndo entre seus dedos e a pele clara e rosada de sua face. O cheiro de lavanda eternizara-se em sua memória. As lembranças dela o auxiliavam na sobrevida afetiva, buscando aqui e ali, em outras mulheres, a mesma sensação de completude que naufragava a cada aventura. 

Sentiu vontade de voltar inúmeras vezes, envolvia-se em outros projetos, enganando a si mesmo sobre sua importância, construída na falsa imagem de fortaleza e determinação. Agora estava ali, iludido de que aquele momento era oportuno para retomar as coisas de onde pararam. Talvez a dor a fizesse aceitá-lo de volta, ao menos como amigo, mas como seria isso possível se ela não enxergava ninguém à sua frente? 

Impacientava-se quando, em lapsos de lucidez, percebia seu egoísmo... Deveria tentar falar com ela? E se ela não o aceitasse? E aceitando ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma. Encheria seu útero de vida e lhe devolveria o amor perdido. Lavaria seus cabelos, hidrataria sua pele, cobriria seu corpo com lençois de algodão. Seus olhos umedeceram e ela continuava alheia a sua presença. Recostou-se na parede, suas pernas enfraqueciam, suou frio, estava sendo tomado por aquele sentimento coletivo. O celular toca, era do escritório, saiu para atender, entrou no carro e partiu. 

Quatro quarteirões adiante, parou em uma lanchonete. Sentou-se a observar as folhas cobrindo o chão, sob um céu azulado de poucas, mas fofas, nuvens. 

- Que calor! 
- Deseja pedir alguma coisa senhor? 
- Uma manga... com casca por gentileza. 

E nunca mais voltou.


Ana Virgínia Almeida Queiroz

O conto continua.
2. Mãe para quase todos



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