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Blecaute.

Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai....

EncontrAR-TE.

É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe...

Pra bem longe do fim....

Ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma...

Espelhos

Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos...

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros...

30 de mai. de 2012

Parte penúltima – A decisão pelo fim


E ali, naquela festa, tudo voltava com tanta força que Théo era novamente tomado pelas sensações de sufocamento e opressão, iniciadas dias antes de sua viagem. Sentado no sofá, observava o quadro familiar que sempre lhe fora sofrido, patético e hostil. Pernas separadas, mãos sobre os joelhos, tronco ereto e pescoço travado, movimentava o olhar, desconfiado, tenso, defensivo. Estava pronto para esquivar-se definitivamente.

Sua mãe, em postura real, vez ou outra lançava mão de sua acidez para ferir Elisa, e ele não entendia as razões pelas quais a irmã não reagia, não fugia, não gritava. O sentimento de impotência se agravava quando vislumbrava o futuro das sobrinhas, inseridas naquele contexto doentio e manipulado por Dona Cecília e Jairo, que se arrastaria por gerações.

Não tinha forças para mudar a dinâmica, mas sobravam-lhe para excluir-se de ambiente tão repugnante. Será que tal afastamento dependia realmente de si? Dúvida que o perseguia, tomando-lhe as certezas sobre seu poder de decisão e independência. Não seria ele também uma peça no tabuleiro? Todos esses questionamentos o deixavam confuso e profundamente angustiado.

Repudiava todas aquelas formas de “amor”, e entristecia-se quando lembrava de Miranda. Talvez com ela tenha vivido uma história verdadeira de afetos e afagos, de cumplicidade e respeito. Abandonara o melhor de si quando partiu e a deixara sozinha. Optara pela sobrevivência, que só seria possível longe da família. Não a levara consigo... por nada no mundo a submeteria às incertezas do caminho que resolvera tomar.

Um dia difícil o aguardava tão logo o sol nascente tocasse a janela do quarto. Seu estômago revirava só de imaginar seu reencontro com ela. Estava com medo, trêmulo. Não sabia como se portar. Preferiu prender-se às imagens de um reencontro feliz a torturar-se com o vai e vem dos convidados de Elisa, que já havia se encolhido em algum lugar da casa.

Jairo o olhava superior enquanto arquitetava com Pedro. As crianças brincavam inocentes. Ele, imóvel por fora e borbulhando por dentro. Dona Cecília soberba. Essa era a realidade visceral, concretizada em sua vida. Sentia náuseas!

As folhas começavam a cobrir o chão, o calor insuportável destacava a plenitude do céu azulado de poucas, mas fofas nuvens. Cenário perfeito para as fantasias infantis, não fosse a hostilidade tempestuosa daquela capela.

O ambiente fúnebre e as flores paradoxalmente entristecidas, a exalarem o odor da morte, açoitavam Théo em golpe definitivo, muito embora ele não percebesse o buraco que crescia no centro de seu peito. A saleta repleta de pessoas chorosas o perturbava, fazendo com que ele entrasse em contato com a própria dor, instalada desde seus primeiros anos de vida. Inconscientemente desejava ser aquele garoto no caixão, merecedor do consolo eterno e das lágrimas de Miranda.

Só a morte poderia salvá-lo da vida de fugas pela qual optara...

Degustara sua última refeição como quem apreciava uma dose de eficaz medicamento. O suco a escorrer pelas mãos amarelava o punho de delicada camisa branca e enchia-lhe os espaços entre as unhas. Lembrou-se da infância e uma fria lágrima rolou com dificuldade pelo rosto, misturando-se ao doce sabor do alimento. Olhar fixo frontal e lábios em movimentos repetitivos desejavam o alcance do centro daquele apetitoso, mas duro, momento de prazer.

Imagens felizes junto ao pai e a Elisa povoavam-lhe a mente, rememorando as guerras com bolas feitas de barro e tantas outras brincadeiras inocentes, que o auxiliaram a manter-se vivo e homem até ali. Mas nada disso era suficiente a partir daquele momento. Cansado e triste, desejava, sem piedade, a paz; aquela que não conseguia imaginar viver ao lado dos parentes, por não saberem ou quererem libertar-se do processo parasitário familiar.

Suspirou profundamente, olhou para o alto, apoiou-se na mesa e levantou. Lavou as mãos, seguiu estrada e nunca mais voltou, deixando para trás parte da angústia presente em cada olhar, sorriso, lágrima, abraço, e tudo o mais que a percepção é capaz de captar ao longo de uma existência.



Ana Virgínia Almeida Queiroz



Acompanhe os contos na sequência:

17 de mai. de 2012

Parte 10 - O encontro com a dor


Guardava para si uma sensação que teimava em sufocá-lo cada vez que olhava para Miranda. Não se alimentava, pois uma pressão do trato digestivo travava o espaço compreendido entre a garganta e o estômago, provocando dor quando tentava comer.

Sentia-se perdido e profundamente perturbado com os toques que anunciavam as mensagens e ligações no celular. A mulher virara um tormento, e as sensações de plenitude carnal perderam espaço para uma ansiedade descomunal. Não suportava o perfume, a risada, a voz ou qualquer outra coisa que a lembrasse. Sofria de um imenso asco, somado a um sentimento de culpa, por ter se misturado com aquela criatura.

Alguns encontros, a saciação de sua necessidade em confirmar-se homem, e um profundo vazio. Lembrou-se do filho e chorou como no dia do sepultamento. Sobre a cama encolhia-se, agarrado ao travesseiro, vestindo em uma bermuda velha, desprotegido o peito. Da certeza sobre sua imponência e virilidade, sobrara um nada, um sopro rápido e seco afundado no velho colchão, recipiente dos mais devastadores sentimentos daquele arremedo de família.

Miranda, que há muito vagava entorpecida pela casa, capacitava-se para ensaiar pequenas pausas ao pé da cama, na tentativa de entender o encolhimento de Fred e, paulatinamente, permitir que o instinto materno fosse tomando conta da imensa e profunda superfície possuída pelo luto de outrora.

A cada tentativa de aproximação, mais Fred se escondia, forçando a companheira a criar estratégias de aproximação das bordas do imenso abismo que se abrira entre eles. O cônjuge irritava-se, implorando por momentos de paz e solidão, tentando promover o afastamento da esposa que, a qualquer tempo, poderia descobrir a escolha feita por ele para adiar o contato com a dor da perda filial.

Miranda sentia o estômago revirar, e um pressentimento de que dias muito duros ainda estavam por vir lhe tiravam o sono. O sofrimento que a abatera por meses aquietara-se e nova nuvem escura se formava em seu semblante. Angustiava-se com a inexistência de pausa. Estava cansada, mas ainda tinha forças.


Ana Virgínia Almeida Queiroz

Acompanhe o conto na íntegra:

7 de mai. de 2012

Parte 9 - A teia

Ele poderia, desesperadamente, realizar tudo o que lhe era mandado, mas nunca seria capaz de elaborar planos e promover sofrimentos com tanta perfeição. Sentia por Jairo um misto de admiração e inveja e, inúmeras vezes, o desejo de vê-lo morto não era suficiente para executá-lo. Ainda era cedo; precisava enfronhar-se nas teias mentais de seu guia e sacá-lo num golpe de mestre, fatal.




Humilhado, nunca obtinha reconhecimento pelos seus feitos. Pedro era a sombra que punha em prática toda a maldade de seu mandante. Aliciavam mulheres, fraudavam notas fiscais, sonegavam impostos, tudo arquitetado sob o pálio da mesma precisão com a qual fora moldada a beleza de Jairo.

Nada falharia se as etapas fossem minuciosamente observadas, pois era o pensante cuidadoso, perspicaz e invencível. Pedro rasgava-se por dentro, mas mantinha-se ali, vivendo de migalhas, trocos e expectativas. Projetava em Elisa todo o seu horror e, com ela, era capaz de ser o melhor vil, o pior marido, bastando Jairo aparecer e dar a impressão à irmã de que estava ali para protegê-la, jogando por terra todo o bem-estar do escravo. Apenas o preferido de Dona Cecília tinha o direito de massacrar a débil vítima, não admitindo que a incompetência de outro se sobrepusesse à sua força e ao seu preparo mentais.

Elisa era um brinquedo nas mãos da mãe, do irmão e do marido. Jairo apreciava a fragilidade da irmã, e de tempos em tempos vinha sugar-lhe a vitalidade, a alegria. Seu cheiro pueril aguçava as mais tentadoras sensações, de tomá-la em seus braços e destruí-la em mil pedaços. No entanto, optara pela tortura por render-lhe prazer mais duradouro. Ela encaixava perfeitamente, reforçando o manancial de comportamentos desumanos do primogênito.

Era como vampiro em busca de sangue. Seus joguetes lhe rendiam as energias dos gêmeos e deliciava-se como em um farto e rico banquete. Renovadas as forças, podia seguir em frente colecionando vítimas. Vivia em busca de satisfação, e Pedro poderia lhe favorecer isso por mais tempo sem ser descoberto.

Sabia manipular as debilidades do cunhado, oferecendo pequenos flashes sobre sua importância. Pedro era tão perverso quanto Jairo, porém menos inteligente. Razão bastante para tanta inveja e vontade de liquidá-lo, mas faltava-lhe recurso, coragem. Franzino, feio e abobalhadamente cruel. O olhar raso e duro em perfeito equilíbrio com os finos lábios a sorrirem de canto. Era sua impulsividade seu maior entrave!


Ana Virgínia Almeida Queiroz


Siga a sequência para compreender este conto:



2 de mai. de 2012

Parte 8 - Ruínas

No parquinho, dezenas de crianças corriam agitadas a interagir, sorridentes, na disputa pelos brinquedos, no reconhecimento dos adultos por seus talentos e suas destrezas. Para ela, o que verdadeiramente importava era um canto na areia, um balde com um pouco de água e algumas folhas e flores. Esculpia cuidadosamente seu castelo, elaborado, a cada dia, ao sabor dos sentimentos que a impulsionavam de forma padronizada à repetição do ritual arquitetônico.

Sentava-se de banda, o corpo apoiado na mão direita, enquanto a outra seguia, harmonicamente, o olhar, em busca de detalhes que compunham a perfeição da obra. Não ouvia nada. Dias iluminados, aquecidos em comunhão com a leveza das folhagens e dos dourados cabelos, que se punham a dançar motivados pela suave brisa.

 
Ali, internamente, a solidão também se moldava, transformava, crescia em torres e pilotis, se manifestando delicadamente ao deslizar de cada punhado de areia através dos pequenos dedos. Um chamado e tudo ficaria para trás. Um breve adeus e a certeza de que, o que fora deixado jamais seria reencontrado, mas poderia ser reconstruído e novamente abandonado.

Nada era para sempre. Nem os castelos, tampouco a presença de seu pai, que embora a tratasse como boneca não preenchia suas necessidades mais íntimas, se afastando de sua convivência ainda pequena. Miranda era a mais nova dos três filhos, e permaneceu no seio familiar presenciando as conquistas dos irmãos e o desbravar do mundo por eles. A cada despedida, novas estruturas se elevavam dentro dela e se refletiam no esmero de suas confecções, reeditadas em quase todas as relações.

Ao casar-se experimentou, pela primeira vez, a sensação daquele que abandona. Perdeu-se entre as sensações de ambivalência e culpa, mas não podia voltar. Aquele castelo não fora construído por ela e ficaria para trás como tantos outros que se dissolveram ao sabor do vento ou de outras mãos. Sua vida se resumia a isso: construções e implosões que se repetiam, favorecendo uma constante e aparentemente indestrutível desconfiança sobre a natureza duradoura e verdadeira do amor.

Movida pelas defesas que sustentavam sua base, convenceu-se de que um "não sei o quê" divino a punia, como um pai severo e educador inflexível. Queria entender o pecado que cometera e, como não obtinha respostas, sucumbia aos castigos. A morte do filho iniciara um novo olhar sobre esse insistente e egóico viver infantil. Precisava crescer, mas as prisões emocionais não colaboravam.

A par da obviedade, começava a descortinar a possibilidade de mobilizar dentro de si energias antes desconhecidas, estranhas, e simultaneamente ameaçadoras e libertárias, capazes de promover a indispensável ruptura com aquela condição psíquica à qual se agrilhoara em seu templo interno abandonado, tantas vezes construído e demolido. Antes, porém, precisava vivenciar o luto que representava o saldar de todas as etapas anteriores de sua existência.


Ana Virgínia Almeida Queiroz


Para entender a história, acompanhe a sequência dos contos:


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