Pages

Blecaute.

Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai....

EncontrAR-TE.

É que desde tenra idade ela funcionava assim... como uma parabólica. Sentia coisas que podiam vir de muito longe...

Pra bem longe do fim....

Ele poderia enchê-la de luz, retirá-la da dor sombria que envolvia sua alma...

Espelhos

Uniram-se atraídos pela vaidade e necessidade de reencontrarem parte de si mesmos...

O desnudar-se cafajeste

Tudo convergia para a crença de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros...

17 de fev. de 2013

O ritual

Ainda sob estado de torpor, provocado por alguns minutos de sono reparador, sentia os olhos arderem, o corpo queimar no contato com colchão e a língua necessitar de algo que a fizesse aliviar a grossa camada nela projetada durante o repouso.

Espreguiçou-se, entrando em contato com as juntas que compunham seu trêmulo corpo, fazendo-a parar por alguns segundos, respirar profundamente e permitir que ele lhe tocasse a memória. Sentou-se na beirada da cama, apoiou o corpo nas mãos sobre o colchão e pousou os pés na fria cerâmica. Fazia calor, mas a brisa da janela lateral de seu dormitório lambia-lhe o dorso suado, da mesma forma que a estimulava a levantar.

Seguiu para a cozinha, estruturando mentalmente o ritual prazeroso de todo começo de tarde. Bebeu um copo de água fresca e em seguida, cuidadosamente, despejou a água na cafeteira, distribuindo o soluto em quantidade suficiente para produzir néctar relativamente forte, na parte superior.  Adoçou com carinho a xícara e aguardou como criança o momento em que o curioso fenômeno físico se processasse naquela caldeira. Viu o líquido de coloração escura escorrer pela minúscula fenda e feliz contemplou o sucesso da arte. Despejou o conteúdo em um recipiente transparente e seguiu com ele para seu quarto.

Já sentada na varanda, de frente para as árvores, ouvia os gritos das crianças brincando no pilotis enquanto segurava pires e xícara com a mesma suavidade com que dança uma bailarina. Contemplava a natureza que em sua beleza se apresentava em odor único – cafeinado. A fumaça aromatizada penetrava em suas narinas, sendo conduzida de forma harmônica por todo o seu organismo. Seus grandes olhos iam se fechando lentamente à medida que a xícara se aproximava de sua boca, na tentativa de sorver cada gota do café que a remetia à doce sensação de beijo invasor: lento, molhado, estonteante. E, enquanto absorvia algo das partículas possíveis do néctar, a língua também passeava pelos lábios na tentativa de capturar qualquer gota que ousasse se perder.

Sua garganta não se ressentia com a temperatura. Ao contrário, dividia o calor entre o trato digestivo e o ápice de sua fronte de forma a perceber, paulatinamente, a energia circulando em suas veias, fremitando em seu centro criativo, despertando para a ânsia de se fazer produtiva. Tudo assumia nova roupagem ao entrar em contato com aquilo que, ao se misturar com ela, compunha textos e arte dentro de si, gerando um doce estado de êxtase, alterando-lhe a consciência e permitindo que, sozinha, descobrisse a cada experiência como aquela, que se repetia diariamente, um pouco de si mesma e do que era possível realizar.

E milhares de conexões se faziam em minutos, durante aquele momento de profusão sensorial, sendo ela apta a captar, senão todas, grande parte das sensações que invadiam seu corpo. Era, sem dúvida, uma de suas paixões, vivenciada sempre da mesma forma, intensa como tudo o que se propunha fazer. Essa intensidade - que no sutil contraste entre o doce e o amargo, sacramentados em um mesmo recipiente - deixava rastros visíveis àqueles que dela comungavam sua sensibilidade, assim como os resíduos que sobravam no fundo da xícara, simbolizando o porvir.
 
 
Ana Virgínia Almeida Queiroz

4 de fev. de 2013

Temporada 2 - Parte 1 - Blecaute


Entrou em seu quarto, trancou a porta, fechou a janela. Dirigiu-se para o armário e desesperadamente procurou o pijama de flanela. Seu pequeno coração disparava a cada gaveta revolvida sem sucesso. Foi quando lembrou-se de sua mãe bronqueando por ela usar roupa tão pesada em clima de tanto calor.



Recordou o dia em que viu, pela primeira vez, uma pessoa morta em um caixão e desejou fervorosamente que seu dia chegasse. Suspirou profundamente, pegou alguns lençóis e cobertores... Esticou-os sobre a cama. Encontrou sob o travesseiro uma fina e curta camisola... sentiu um nó apertando-lhe a garganta. Parou alguns instantes, olhou em volta e catou alguns brinquedos barulhentos. Seu coração permanecia inquieto, seu raciocínio era rápido, seus lábios eram pressionados e mordidos enquanto executava suas ideias, numa tentativa de não deixar escapar nenhum detalhe que sua mente ia lhe enviando como solução para seus medos.




Distribuiu os brinquedos no chão ao redor da cama e enfiou as sobras dos lençóis e cobertores embaixo das laterais do colchão. Vestiu a roupa de dormir, destrancou a porta, apagou a luz e correu em disparada para a cama, entrando com dificuldade pela única abertura possível deixada nas roupas de cama cuidadosamente retesadas, à semelhança de finas, porém firmes, chapas de fórmica, simbolicamente esticadas para defesa de sua integridade.

Do seu leito ainda podia ouvir o barulho na casa e o som da televisão; porque estivesse muito cansada, adormeceu. Sua mente, não raro inquieta, impedia-lhe de aprofundar o sono. Quadros confusos e conflitantes iam se projetando em uma tela preta, deixando reminiscências no corpo físico a cada manhã. Seu adormecer era habitualmente interrompido pelo silêncio sepulcral da escura madrugada. Entorpecida pelo cansaço físico e mental, ainda lhe restava um quê de lucidez que lhe permitia perceber a movimentação angustiante no corredor que conduzia aos dormitórios. Passos transitavam vagarosamente em direção ao seu quarto.

E ali, deitada, conseguia ouvir a respiração de sua mãe que se deleitava em sono profundo. Apertou os olhinhos, cerrou a mandíbula, o coração acelerou, encolheu-se e uma lágrima desceu acidamente pelo canto do olho mais próximo ao travesseiro. Virou-se para o lado da cama que ficava voltado para a porta; certificou-se de que os brinquedos permaneciam ali; ajeitou os panos; frustrou-se ao fingir-se de morta, pois seu coração teimava em bater na garganta, lembrando-lhe sobre o fato de estar viva.

Uma sensação de solidão absoluta percorria-lhe os sentidos. Queria gritar, deixar então que o coração saltasse da boca e corresse em disparada pela rua em fuga. Mas tudo o que lhe restava era o encolhimento enquanto uma sombra humana crescia em sua porta e sua mãe dormia no quarto ao lado. Seu desejo imediato era apenas um. Precisava de horas de luz, que a noite findasse naquele exato instante levando consigo seus medos e a imagem de seu pai.

Ana Virgínia Almeida Queiroz - CRP: 01-7250


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Google+ Twitter Facebook Delicious Digg Favorites More